George R. R. Martin Sacanas sem lei do fantástico
Uma série que hoje regressa à TV transformou-o numa estrela do mainstream. George R. R. Martin é uma das figuras mais influentes do mundo para Time e um ponta-de-lança na valorização do fantástico - vampiros adolescentes à parte
George R. R. Martin está algures entre os Sete Reinos de Westeros e o Saldanha, em Lisboa. E nem a sua lata de Coca-Cola fica para contar a história. Explicamos: o autor da saga de fantasia histórica As Crónicas de Gelo e Fogo, agora mais conhecida pelo título da série televisiva Guerra dos Tronos, que hoje regressa ao canal SyFy, foi catapultado para o estrelato graças à produção da HBO. E cerca de 700 pessoas, na sua maioria com idades entre os 15 e os 35 anos, passaram quatro horas com ele entre perguntas, respostas, autógrafos e um refrigerante surripiado à laia de recordação. Mal entrou no Teatro Villaret, perguntou-lhes: "Onde é que vocês todos estavam em 2008?"
Gargalhada colectiva, parte dela de vítimas felizes do efeito televisivo nos seus recentes hábitos de leitura. A sala encher-se-ia várias vezes com o riso fácil e rejubilante de fãs presos a cada palavra do ídolo literário. Há quatro anos, George R. R. Martin esteve em Portugal no Fórum Fantástico, evento anual em Lisboa que move dezenas de fiéis da fantasia, ficção científica e afins universos. Na altura, a HBO já tinha comprado os direitos de adaptação da sua saga, mas tudo era ainda mera burocracia. Agora, o cenário mudou. A sua vida também. São multidões, e não grupos, que o esperam a cada passo da sua digressão. "Espero estar a lidar com isso com uma suavidade e graciosidade excepcional", ri-se em conversa com o PÚBLICO, "especialmente [sendo] um miúdo de Bayonne, Nova Jérsia; até 1981 nunca tinha saído dos EUA e agora sou convidado para os quatro cantos da Terra. Costumo brincar dizendo que gostava que me tivesse acontecido há 30 anos, em vez de me acontecer aos 63".
No último ano viu a sua carreira de autor multipremiado (vários prémios Hugo, Nebula, Bram Stoker, entre outros) e de culto explodir no mainstream. Contratou mais um assistente ("Estou a tornar-me uma indústria!") e aprendeu a dizer "não" às constantes solicitações, tudo para poder voltar à página em branco. A agitação "deixa pouco tempo para aquilo que me trouxe aqui - a escrita. Quando todos os fãs, editores, troféus, entrevistas e louros se vão embora, sou só eu, a história e aquele ecrã de computador em branco e o cursor a piscar. É para isso que tenho de encontrar mais tempo".
A chegada do sucesso
Em 2011 foi eleito uma das cem pessoas mais influentes pela revista Time, corolário de uma carreira de 37 anos em que As Crónicas de Gelo e Fogo são a sua obra maior. Ano em que chegava a série da HBO, com grande sucesso (média de 9,3 milhões de espectadores, a terceira mais popular do canal), e em que publicava, depois de cinco anos de polémico e doloroso interregno para os fãs, A Dança dos Dragões, o quinto capítulo (de sete) das Crónicas. Já vendeu mais de 15 milhões de exemplares, 150 mil dos quais em Portugal - a editora Saída de Emergência tem em Martin o seu autor mais vendido.
E pronto, George R. R. Martin, uma figura redonda e afável de 63 anos, barba e suspensórios, está na estrada como Kerouac, em digressão europeia há perto de um mês, com paragens em Lisboa e Porto. Há uma nova temporada da série, a colectânea de contos O Cavaleiro de Westeros e Outras Histórias agora lançada em Portugal e o autor carrega consigo a aura dos seus volumosos épicos (a edição portuguesa divide os cinco capítulos existentes das Crónicas em dez tomos). Eles contêm a história dos Sete Reinos de Westeros e toda a sua barbárie e encanto medieval, inspirados na disputa pelo trono da Guerra das Rosas do século XV britânico e onde ninguém, nem a personagem mais amada, está a salvo. Um complexo mapa e trama de reinos, poder, homens e mulheres amuralhados, sexo, violência e a ameaça de um Inverno que chega, escondido atrás de uma muralha de 200 metros de altura a dividir aquela terra de Idade Média. Um território de sacanas sem lei profundamente humanos. Quentin Tarantino podia morar ali.
O que é "literatura"?
J.R.R. Tolkien e o seu Senhor dos Anéis são incontornáveis numa conversa com Martin. Muitas vezes, como é o caso da entrevista ao PÚBLICO, é ele que evoca o britânico que apadrinhou o género da fantasia épica. Com o mitológico Tolkien, a travessia do herói é um ordálio, mas o Bem triunfará. E o "Tolkien americano", como a Time lhe chamou, nada tem contra isso - da forma "maciçamente inovadora" como J.R.R. o fez. O trabalho de Martin é sim uma resposta aos imitadores de Tolkien. "A fantasia contemporânea está cheia de senhores do mal vestidos de preto, forças sinistras que se agitam na obscuridade e de elfos e unicórnios que se juntam para se lhes opor", critica Martin, filho de um estivador de Nova Jérsia que cresceu com comics (tem vários exemplares raros) e H. P. Lovecraft. "A luta entre o bem e o mal está no coração humano. Todos temos a capacidade para ambos. Os grandes heróis da história têm defeitos, pés de barro; os grandes monstros têm qualidades redentoras - Hitler adorava cães."
A herança de Tolkien
Martin é um dos filhos pródigos de Tolkien, retratando a natureza humana de uma forma bem mais crua. Guerra dos Tronos é como "Os Sopranos na Terra Média", diz um dos produtores, David Benioff. David Orr, colunista de poesia do New York Times, põe o dedo na ferida: "Acima de tudo, a fantasia moderna é a literatura da estranheza. Os livros de Martin, no entanto, são elogiados pelo seu realismo." E a política de Westeros, em que se vive e morre pela espada, é a mais pura realpolitik.
O facto de o tempo de Guerra dos Tronos ter chegado agora diz algo sobre o momento que vivemos? "Foi obviamente uma boa altura [para fazer a série], porque teve esta ressonância tão forte. Mas é difícil de avaliar. Neste momento temos uma eleição presidencial a desenhar-se nos EUA e muitos dos candidatos discursam dizendo "Esta é a eleição mais importante das nossas vidas", mas disseram isso há quatro, oito, doze anos. É só retórica."
Shakespeare, Fitzgerald, Hemingway ou Tolkien - todos tiveram momentos de menor popularidade na cultura literária ocidental. "Todos os escritores gostam de pensar que o seu trabalho lhes sobreviverá", admite George R. R. Martin, enterrado no sofá e com o olhar perdido. Será que com um pequeno ecrã a levar a sua palavra ao mundo essa probabilidade é maior? "O poder da TV expôs muitos mais milhões à obra, mas se há coisa que me faz pensar que o meu trabalho perdurará é algo como a sessão [do Teatro Villaret]. Se estou a dizer algo a miúdos que são duas gerações mais novos e que lerão os meus livros aos seus filhos..."
Essa audiência aplaudiu ruidosamente quando Martin ironizou: "O meu lobisomem [personagem de uma obra anterior] não tira a T-shirt", referindo-se a uma das personagens do blockbuster adolescente Crepúsculo. Os livros de Stephenie Meyer, precedidos pelo feiticeiro de J. K. Rowling, ou mesmo o recente sucesso Hunger Games e as adaptações de comics ao cinema, marcaram a última década da cultura popular. O sobrenatural e o fantástico, com diferentes graus de qualidade, agradam. Poderá esta paisagem cultural favorecer a aceitação do (bom) fantástico na dita "literatura" da alta-cultura? "É uma pergunta interessante. Tenho vindo a ver mais aceitação deste género, tido como cultura popular descartável, nos cânones da ficção - pelo menos na América. Tudo vai dar à grande disputa entre Robert Louis Stevenson e Henry James no final do século XIX, na qual o mundo literário infelizmente sentiu que o vencedor foi James - enquanto A Ilha do Tesouro e afins foram vistos como entretenimento menor. Penso que estamos a voltar a um estado mais saudável, em que julgamos uma obra não segundo o género em que se inclui ou pela sua popularidade mas pela sua qualidade. E a prova é a sua sobrevivência. O que perdura."
Voltar a Westeros
Enquanto jovem, Martin frustrava-se com o facto de saber sempre o final dos romances históricos que devorava. Por isso, lançou-se na ficção de fantasia histórica - entre outras coisas. Foi professor de Jornalismo e escreveu ficção científica; foi argumentista de A Bela e o Monstro e da versão anos 1980 de Twilight Zone. Para ele, a televisão não é um lugar estranho. Gosta de Guerra dos Tronos, da qual é co-produtor executivo e argumentista de um episódio por temporada, uma aposta forte do canal de A Escuta, Roma ou Deadwood (às quais já foi comparada): os primeiros dez episódios custaram 60 milhões de dólares, diz o Wall Street Journal, e na segunda temporada o orçamento cresceu 15%.
George R. R. Martin tem 63 anos, vive em Santa Fé e está ansioso por regressar à sua sala para voltar ao reino de Westeros. "Não sou desses tipos que conseguem escrever no avião, ou uma página em meia hora no quarto de hotel. Quando for para casa, vou proteger-me do mundo real para que possa viver em Westeros e escrever." No Villaret, um fã perguntou o que inquieta muitos outros: dado que o tempo entre novos volumes é tão alargado e que faltam dois livros para terminar a história, tem alguns manuscritos em lugar seguro caso... morra? Tal como Stieg Larsson, outro autor de best-sellers com planos épicos para a sua história sueca de um jornalista e de uma hacker, Martin tem "algumas notas, sim". "Mas menos do que possam pensar. Se me acontecer alguma coisa, vocês não terão sorte nenhuma."