Dançando com a Diferença: "Não nos venham ver por indulgência"
Portadores de deficiência estreiam hoje Dez Mil Seres na Casa das Mudas, na Madeira, com coreografia de Clara Andermatt
"Não é qualquer pessoa com deficiência que pode subir a um palco." Henrique Amoedo fala, peremptório, sobre a Companhia Dançando com a Diferença (CDD) que dirige na Madeira desde 2001 numa das varandas da Casa das Mudas, na falésia da Calheta. Lá dentro, na obscuridade do auditório, a coreógrafa Clara Andermatt dava as indicações finais aos intérpretes de Dez Mil Seres, que estreia hoje às 21h (repete amanhã às 17h): Mickaella Dantas (ex-bailarina da companhia inclusiva inglesa CandoCo, amputada da perna direita), Aléxis Fernandes (com síndrome de Asperger), Bárbara Matos, Rui Costa, Sofia Marote e Joana Caetano (com síndrome de Down), e Telmo Ferreira (estigmatizado desde a infância, em Câmara de Lobos, por diagnóstico equívoco de desajustamento socioemocional).
Ao contrário do que é habitual nos trabalhos da CDD, esta peça não contará com bailarinos sem deficiência. E, apesar de a coreógrafa estar a bisar a colaboração com a CDD - depois do muito bem sucedido Levanta os Braços como Antenas para o Céu (2005) -, regressar não tornou o processo mais fácil: "O caminho tinha de ser diferente do anterior. Não quis voltar à pesquisa sobre as possibilidades destes corpos, mas tentar trazer à superfície o enigma que é o mundo interior destas pessoas".
Começaram por trilhar juntos zonas rurais da ilha e enseadas pedregosas; expuseram-se à chuva e ao calor, a odores, sons e texturas, em busca de novas percepções sobre as paisagens do seu quotidiano. "Quantas vezes assisti, pasmada, a verdadeiras "viagens" durante as improvisações que se seguiam", diz Andermatt. Difícil foi não dispor do tempo necessário para reter esses momentos e trazê-los para o palco. "Mas descobri ser esta procura idêntica à que ocorre com os bailarinos convencionais, mais habituados a alinhar os corpos treinados pelo lado exterior do movimento, do que a indagar os motivos profundos a desencadeá-lo."
A trajectória artística de Andermatt é marcada por um jeito teatral de compor a dança e pelas abordagens desinibidas de elencos e temáticas pouco exploradas - ou de risco. A sua história pessoal (uma sobrinha com autismo, hoje com 21 anos) terá contribuído para que ousasse com estes intérpretes. Eles encantaram-se com o surrealismo sombrio de H. R. Giger e com o erotismo inquietante da pintura de Balthus, inspiraram-se com os arlequins de Picasso, com as figuras de Rodin ou os "seres imaginários" de Jorge Luís Borges.
Em Dez Mil Seres, evocam-se estes universos e os intérpretes entregam-se, sem reservas, à construção de todo um imaginário. Num indecifrável poema fonético, nas interacções entre o corpo amputado, os corpos "completos" e as figuras pequeninas, agradavelmente musculadas e saudáveis, há uma intensidade atraente, de indizível estranheza. Uma empenhadíssima demanda por uma língua franca, uma essência da comunicação humana.
A paisagem sonora (Jonas Runa, compositor, intérprete e musicólogo, colaborador de Joana Vasconcelos e de Jorge Lima Barreto) traz um subtil conceito novo: a espacialização da música fá-la-á emergir, como se coreografada, de distintas zonas da sala; os estereogramas no telão de fundo conjugam-se para subtrair a peça dos estereótipos da bidimensionalidade e das zonas do conforto perceptivo.
"O público não quer ser defraudado, e não gosto que nos venham ver por indulgência", diz Amoedo. Esta luta levou-o a trocar o Brasil natal pela Madeira quando, em 2001, a Direcção Regional de Educação Especial o convidou para este projecto, cedendo-lhe um ginásio no Funchal e apoios públicos - gesto algo paradoxal, numa ultraperiferia insular.
Desde de que a "inclusão" se tornou politicamente correcta, os equívocos sobre o que é arte inclusiva atingiram particularmente as artes do corpo. Não basta colocar um deficiente em cena para tornar uma performance inclusiva. Banalizar o conceito é subverter os seus princípios, e, no limite, acentuar a exclusão. "Esta dança também não é (ou é-o só indirectamente) uma terapia; é pautada pelos critérios da exigência artística [convites a outros coreógrafos de renome, como Rui Horta (2008) ou Paulo Ribeiro (2011), são parte desse desígnio], a começar na implacabilidade que o grupo aplica sobre si próprio", acrescenta Amoedo.
Assistimos a extenuantes e intermináveis ensaios de movimento, luz e som; e, claro, às habituais descargas emocionais, sempre mitigadas por Amoedo e Andermatt e com a intermediação cúmplice dos familiares e de voluntários. "Até me esqueço que não estou a trabalhar com um grupo de dança convencional", confessa Andermatt.
Se o atraso dos apoios públicos levou para outros caminhos os habituais intérpretes não-deficientes da CDD, mais dificilmente se vislumbraria um futuro, fora da companhia, para os que ficaram - que nos desafiam, ao mostrar-nos os seus corpos tal como são, num processo mais alargado que acaba por transcendê-los. Este projecto mostra-nos a humanidade no seu melhor. As assimetrias persistem, porém, e o combate pela sua valoração artística é arriscado e repleto de armadilhas. Tocados ou não, inevitável será sairmos da Casa das Mudas inundados de questões; talvez um relance sobre o imenso Atlântico no sopé da Calheta ajude a colocá-las numa outra dimensão.