Castelos de artes
Paulo Cunha e Silva é o comissário do projecto O Castelo em 3 Actos, que promete desmistificar a sacralidade da história. Quer discutir Portugal e o mundo, a partir da metáfora do castelo
Já imaginou D. Afonso Henriques a verter uma lágrima do alto da sua estátua, o fantasma do "Rei Ghob" a saltar do Youtube para um aposento do Paço dos Duques de Bragança ou um Menino Jesus de filtros de cigarros e tamanho gigante sentado no altar da capela deste palácio vimaranense?... Pois é isso, e muito mais, que a partir de hoje se vai poder ver na Capital Europeia da Cultura.
A arte contemporânea, a performance e o teatro de rua vão tomar "de assalto" o Castelo de Guimarães. Mas esta será uma acção pacífica, ainda que disposta a enfrentar todas as questões e desafios, num projecto engendrado por Paulo Cunha e Silva. "É um salto entre o passado e o futuro, mesmo sabendo nós que, às vezes, o futuro tem dificuldade em implantar-se no passado", diz o curador da iniciativa.
Assalto-destruição-reconstrução são os três actos que enformam este projecto, que, contudo, não se desenrolarão numa sequência cronológica nem linear, antes se repetirão e reencenarão ao longo do ano.
Cunha e Silva recorda que os responsáveis por Guimarães 2012 começaram por torcer o nariz à ideia do castelo. "Disseram-me que a cidade tinha castelo a mais. Respondi-lhes que, por isso mesmo, não se podia esquecê-lo, era preciso enfrentá-lo, dissecá-lo."
Pondo de parte a história, o ex-conselheiro cultural da Embaixada de Portugal em Roma pegou no castelo como metáfora não só da identidade portuguesa como da situação actual do mundo. E urdiu uma teia de exposições, instalações e performances, conferências e filmes, reescrita de livros e até uma Última Ceia de cozinha contemporânea.
O castelo como metáfora
"O Castelo é uma poderosa metáfora para agarrar as grandes questões contemporâneas, e para enfrentar a situação da Europa neste momento de grande indefinição", repete Paulo Cunha e Silva, ao guiar-nos, na quinta-feira, numa visita aos cenários do primeiro dia deste Castelo em 3 Actos, ainda em plena montagem. "Nós passamos a vida a fazer castelos, mesmo se muitos deles são de cartas ou de areia", acrescenta o comissário, que centrou o primeiro momento do projecto na invasão - no "assalto" - da arte contemporânea aos monumentos de Guimarães mais carregados de história.
Entre o castelo e o Paço dos Duques de Bragança há, de facto, um continuum histórico, que tem pelo meio a Igreja românica de S. Miguel (onde se diz que D. Afonso Henriques terá sido baptizado). É entre esses três lugares que, pelas 18h, ocorrerá o "assalto ao castelo", uma performance urbana pela companhia britânica Footsbarn Travelling Theatre, que está desde há semanas a fazer uma residência em Guimarães (ver suplemento ípsilon de ontem).
Meia hora depois, é o tempo da inauguração da grande exposição distribuída pelos três espaços. Aquela que certamente mais irá surpreender o visitante será a que ocupa as 13 salas (incluindo a capela) que fazem o percurso expositivo patrimonial do Paço dos Duques. "Convidámos artistas, que reflectem sobre o tema do castelo, com os seus vários significados: mito da origem, muro, segurança, fronteira, separação, cerco e tantas outras ideias."
São, ao todo, quase uma vintena de artistas, designers e arquitectos, que aceitaram dialogar/confrontar a sua linguagem e as suas propostas contemporâneas com o peso e a penumbra da história.
Aqui fica o roteiro das salas do primeiro andar do Paço dos Duques: Rui Chafes esculpe o reencontro impossível entre um guerreiro e uma princesa à janela; princesa é também Leonor Silveira, a actriz-fetiche de Manoel de Oliveira, a olhar o mar num vídeo de João Onofre; a dupla João Pedro Vale/Nuno Alexandre Ferreira enfrenta - "com cenas que poderão ferir a susceptibilidade dos visitantes", avisa o comissário - o imaginário do "Rei Ghob" e do seu castelo de horrores numa ruidosa instalação formada por 31 vídeos; João Louro, com os seus sinais de trânsito, orienta o caminho para a sala do banquete, naquilo que é também um percurso pela gastronomia portuguesa; Julião Sarmento coloca no canto de uma sala uma "mulher à espera" de corpo e cabeça cobertos; José Pedro Croft constrói um caleidoscópio com um jogo de espelhos entre mobiliário D. José; João Leonardo dá sequência à sua temática tabagística com o tal Menino Jesus revestido por cinco mil "beatas"; Fernanda Fragateiro dialoga com a tapeçaria da conquista de Ceuta através duma instalação de quatro mil mosaicos de terracota; o angolano Yonamine - "Interessa-nos cobrir o espaço da expansão colonial portuguesa no mundo", nota Paulo Cunha e Silva - cria um jardim de cactos nos quais inscreve sinais da dominação colonial e da mitologia africana; Adriana Molder regressa ao mito da casa assombrada; Filipa César filmou a fortaleza de Cacheu, na Guiné; Miguel Palma põe um motor a fazer farturas; Ana-Perez Quiroga ilumina com néons - "casa comigo", "turn me on" - o aposento soturno da rainha Catarina de Bragança.
À saída do Paço, na Igreja de S. Miguel, Gabriel Arantes regista uma encenação da peça de Aristófanes Os Pássaros filmada no Haiti. E, na torre de menagem do castelo, o arquitecto João Luís Carrilho da Graça e os designers Miguel Vieira Baptista e R2 (Lizá Ramalho+Artur Rebelo) projectam a sua "reconstrução". "Pedi-lhes que criassem três modelos para a construção de um novo castelo, através de intervenções com uma dimensão performativa e teatral", explica o comissário. Aqui, Carrilho da Graça quis mesmo ir mais fundo na escavação das bases e da origem do castelo, mas como o Igespar não autorizou a operação, o arquitecto ficou-se por uma maqueta do seu projecto.
A acompanhar esta visita, discretamente vigilante, estava o director do palácio, António Ponte. "É importante explicar aos visitantes aquilo que está a acontecer, informá-los de que não se trata de nenhuma desmontagem do museu, mas antes da montagem de novas exposições", diz o responsável. Mas era notória também a sua preocupação em assegurar que as intervenções dos artistas contemporâneos não pusessem em risco o património. "O Paço é um espaço mais estático do ponto de vista expositivo, e este evento vai certamente trazer uma nova perspectiva e uma nova dinâmica para o palácio", diz António Ponte, acrescentando que não teve qualquer dúvida em autorizar esta "invasão" de arte contemporânea, tanto pela confiança que lhe merece o comissário, como pelos artistas envolvidos, que classificou como "os melhores da arte portuguesa actual".
Os reis também choram
No final da inauguração, pelas 20h, o artista basco Ibon Mainar vai projectar sobre a escultura D. Afonso Henriques de Soares dos Reis e sobre as árvores à sua frente uma imagem virtual do "primeiro rei" derramando uma lágrima. "É uma forma de desmistificar a figura, mostrando alguém que certamente também sofria nas batalhas, e também chorava", disse o artista, quando estudava in loco as condições para a sua performance visual.
A programação dura até 1 de Dezembro. "Não é uma data inocente, é o dia da Restauração, cujo feriado foi abolido. É também uma brincadeira política: restauramos a nossa Restauração", ri Paulo Cunha e Silva. Haverá o ciclo Castelos de Cinema (selecção do crítico e comissário do audiovisual de Guimarães 2012, João Lopes); curtas-metragens de Ivo M. Ferreira; uma dupla conferência internacional de reflexão sobre temas como a Europa, a emigração e as fronteiras; uma ceia confeccionada pelo chef José Avillez; e o lançamento das reescritas de O Castelo, de Kafka, por José Eduardo Agualusa, Gonçalo M. Tavares e Mário Cláudio.
Tudo terminará com uma extensão a Vila do Conde - saindo das muralhas de Guimarães - e a inauguração, numa ermida que está a ser construída numa quinta privada, que fica nos Caminhos de Santiago, duma instalação do artista conceptual americano Robert Weiner. "É uma espécie de metástase benigna do castelo, fora do sítio de Guimarães, como que a dizer que há sempre mais caminho", diz Paulo Cunha e Silva.