Ao menino e ao avaro...
O Avarento
De MolièreEncenação de Rogério de CarvalhoPORTO, TeCA, 24 de Julho, 16h00Casa cheiaCom a crise económica, financeira e moral, qualquer espectáculo de teatro ganha ressonância política, e as encenações parecem ter um sentido de urgência particular. Que uma peça como O Avarento, feita em 1668, inspirada numa obra de Plauto de 200 a.C. (ou talvez numa do grego Menandro, ainda mais antiga), possa ser feita em qualquer época é prova de que o mundo está para acabar - todos os dias. O primeiro mérito desta encenação, estreada em 2009 e premiada no Festival de Almada, é ajudar a pensar com argúcia os tempos que correm.
Harpagão, um experiente e duríssimo usurário, planeia casar os filhos, Cleanto e Elisa, com noivos mais idosos, mas favoráveis às finanças da casa, enquanto ele próprio pretende desposar uma jovem, por sinal a mesma por quem o filho está perdidamente apaixonado. Atormentado com a perspectiva de perder os seus dez mil escudos enterrados no jardim, as contas dos dotes e das bodas acabam por condená-lo à solidão, enquanto à sua volta se realizam vários enlaces e desenlaces felizes. A peça é uma sátira da ganância que, de caminho, conforta os loucos de amor, mesmo empobrecidos, com a ilusão da felicidade eterna.
Várias coisas se destacam no espectáculo por serem muito bem feitas: a tradução fresca de Alexandra Moreira da Silva, que dá força e beleza sonora às palavras e garante a actualidade política da peça; a interpretação de Jorge Pinto, chocarreiro (é um elogio); o compasso cromático da luz de Jorge Ribeiro com o cenário de Pedro Tudela; e a mise-en-jeu de Rogério de Carvalho, isto é, a disposição das peças - os actores - no tabuleiro de jogo - o palco.
Jorge Pinto consegue o feito de gerar simpatia por uma personagem aparentemente detestável, que se segue com prazer suficiente para torcer por ela, e se abandona com algum pesar em favor de um volte-face final sabiamente precipitado por Molière. A artificialidade das últimas cenas recorda-nos que só nas tábuas os finais são felizes. As personagens escutam-se umas às outras a toda a hora e a desconfiança corre entre elas permanentemente. De modo geral, o elenco está à vontade com os tempos e o espírito da comédia, mas o protagonista é jogado com espontaneidade e precisão ímpares.
Rogério de Carvalho espalha os actores pelo espaço vazio do tapete colorido de Tudela, de modo a que eles pareçam sempre presentes, prontos a passar a perna ao parceiro. Com a definição de espaços e estados de alma sugerida pela luz, ficam desenhados no palco os vínculos invisíveis que prendem as personagens umas às outras, os de poder como os de amor. Ao fundo, o jardim onde Harpagão enterrou o dinheiro ilustra o lugar frio e obscuro onde se esconde o egoísmo mais infantil e narcísico. A encenação compõe este mundo com estilo e verosimilhança.
Jorge Louraço Figueira