A exuberância garrida de Ornette
Se há algo que caracteriza a música do saxofonista norte-americano Ornette Coleman é o uso de contrastes fortes. No seu concerto do Jazz em Agosto, o músico esteve à altura da sua reputação colossal, obsequiando o público com o que de melhor há na sua música. Dotado de uma paleta sonora garrida, o músico transpôs fragmentos melódicos, aparentemente simples, para os quadrantes mais diversificados da harmonia e do ritmo. A riqueza das justaposições criadas fez com que a música de Ornette tivesse invariavelmente duas qualidades aparentemente antagónicas: soou tão familiar como surpreendente. Foi aí, sobretudo, que residiu o seu génio como comunicador. Foi também por essas qualidades que a sua música tem vindo a resistir ao desgaste do tempo e dos estilos.
Influenciado, possivelmente, pelo movimento Dada, Ornette demonstrou também o seu domínio na apropriação e colagem de ideias aparentemente desconexas, conferindo-lhes novos significados através da sua descontextualização. Foi com esse espírito que, ao longo da noite, transpôs para o seu universos pessoal trechos de Bach ou Stravinsky, acabando por subverter esse material para atingir os seus próprios objectivos.
Próximo dos oitenta anos , o músico surpreendeu também pelo vigor do seu sopro, assim como pela clareza penetrante e articulada do seu timbre. Para aqueles que o consideram mais um compositor excêntrico do que um mestre do seu instrumento, Ornette não deixou dúvidas quanto ao seu invulgar domínio do saxofone. Exibiu, de forma bem vincada, um estilo tão pessoal como inconfundível. Embora se assuma um multi-instrumentista, o trompete foi usado apenas para colorir algumas passagens curtas, e o violino, embora presente em palco, não foi usado de todo. Ornette restringiu-se portanto ao essencial.
O restante grupo esteve à altura das exigências do mestre, assim como das expectativas criadas com o lançamento do seu último registo discográfico, Sound Grammar. Aliás, grande parte do repertório foi extraído do mesmo CD. Os três baixos e bateria colaram-se a Ornette de forma irrepreensível, quer nos trechos vertiginosamente rápidos, quer nas paragens súbitas no final de algumas das exposições temáticas.
Alguns pontos fracos surgiram nos andamentos mais lentos, onde o baterista Denardo Coleman foi menos inventivo, particularmente nos rubato, tendo surgido ainda um problema de afinação entre o contrabaixo de Tony Falanga e o baixo eléctrico de Al Macdowell, na curta introdução do quarto tema. O uso esporádico do pedal de "wha-wha", por parte do contrabaixista Charnett Moffett, nem sempre resultou bem. No entanto, trataram-se de ocorrências pontuais que não desvalorizaram significativamente um grande espectáculo.
A noite começou com o tema Follow the Sound, poderosa massa sonora entoada a velocidade estonteante. O pizzicato de Charnett Moffett foi fundamental para projectar o andamento, assim como o uso de pratos por parte de Denardo. O trabalho de arco de Tony Falanga destacou-se melhor nas introduções aos temas mais lentos. Em Sleep Talking invocou a Sagração da Primavera de Stravinsky e, no oitavo tema, interpretou parte da 1ª Suite para Violoncelo de Bach, ambos com boa articulação. O grupo destacou-se também em temas como Jordan, abertura do novo CD, Call of Duty, onde Ornette tocou com particular intensidade, e Turnaround, onde o entendimento intrínseco dos blues foi explicitamente tocado.
Após uma ovação arrebatadora, foi a vez de Lonely Woman, clássico absoluto do jazz de vanguarda dos anos 60.
Rui Horta Santos