Júlio Cardoso é a mulher que um alemão sempre quis ser

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Charlotte von Mahlsdorf permanece uma personagem enigmática nelson garrido

O actor assinala os 50 anos de carreira teatral interpretando o monólogo de Doug Wright, texto vencedor de um Pulitzer e de um Tony para a sua encenação na Broadway

O cenário tem o despojamento necessário ao exercício pleno do actor: dentro de uma quadrícula desenhada no chão, e ao mesmo nível da plateia, há uma grafonola, uma arca antiga, uma mesa com um pequeno cofre em cima e três cadeiras em volta. É nesta "arena" que Júlio Cardoso, meio século de teatro no corpo, vai, durante quase duas horas, contar a história de Lothar Berfelde (1928-2002), aliás Charlotte von Mahlsdorf, um alemão cuja vida deu tantas voltas que lhe valeram uma autobiografia, um filme e uma peça de teatro que fez sucesso na Broadway.

Eu Sou a Minha Própria Mulher, texto do dramaturgo norte-americano Doug Wright, é a nova produção da companhia portuense Seiva Trupe, que Júlio Cardoso (n. Ponte da Barca, 1938) interpreta a solo, num monólogo para cuja encenação convidou João Mota.

O encenador da Comuna, "honrado pelo convite", aceitou o desafio de dirigir pela primeira vez um actor que conhece há quase quatro décadas, do tempo em que o viu na Bernarda Alba no palco do Teatro Experimental do Porto (TEP), em 1972. "Existe entre nós uma amizade cimentada muitas vezes no silêncio", e também na partilha de uma carreira paralela, que muitas vezes se cruzou entre as visitas da Comuna ao FITEI, no Porto, e as da Seiva Trupe à casa cor-de-rosa na Praça de Espanha, em Lisboa.

João Mota, que é também o autor do espaço cénico de Eu Sou a Minha Própria Mulher, quis, com a sua simplicidade, dar todo o campo ao actor, e a um texto que classifica como "muito difícil", pois faz o cruzamento de mais de trinta personagens em entrelaçados monólogos. "É uma experiência diferente daquela que fiz com o Carlos Paulo e a sua interpretação d"O Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa", explica o encenador, dando ênfase ao risco que o texto de Doug Wright (que valeu um Pulitzer ao dramaturgo, e também um Tony para a sua encenação na Broadway, em 2003) constitui para qualquer actor.

Consciente desse risco mostra-se Júlio Cardoso, que decidiu subir a parada por respeito para com a sua carreira de 50 anos de palco e para com os seus seguidores e admiradores. "Independentemente de exigir um bom actor, esta peça exige um bom comediante, pois ultrapassa muito o registo de uma interpretação técnica, linear", diz o actor da Seiva Trupe, salientando a complexidade da personagem de Charlotte von Mahlsdorf.

Envergando um vestido preto, lenço, meias e sapatos igualmente negros, a que se acrescenta um claro colar de pérolas falsas, Júlio Cardoso recita as memórias desse enigmático Lothar/Charlotte, que, com apenas 15 anos, descobriu a sua identidade de mulher quando vestiu a roupa de uma tia. E foi como mulher - "mas sem nunca recorrer ao expediente do travesti", da imitação obsessiva de uma feminilidade exterior através da maquilhagem e outras próteses, nota o actor - que Charlotte viveu o resto da sua (longa) vida, ainda hoje vista como um enigmático mistério. Atravessou o nazismo, o comunismo e o capitalismo; passou pela Juventude Hitleriana, criou um cabaré clandestino que, diz-se, chegou a ser frequentado por Marlene Dietrich e Bertolt Brecht; foi acusada de jogo duplo com os nazis e, mais tarde, de colaboração com a Stasi; coleccionou móveis antigos e com eles criou um museu, que ainda hoje existe em Berlim - o Gründerzeit Museum, em Mahlsdorf -; acabou condecorada, já depois da queda do Muro, pelo Governo da Alemanha Ocidental...

"Fiz vários monólogos na minha carreira, mas nunca com uma personagem com esta dimensão", diz Júlio Cardoso, evocando mesmo outra peça-monólogo, Mistério Bufo, de Dario Fo, que fez em 1984. "Nessa altura, eu tinha menos 25 anos, corria, saltava... Agora é tudo mais difícil, é um trabalho mais exigente", acrescenta o actor, cuja carreira começou em 1959, numa Antígona seguindo a versão do fundador do TEP, António Pedro, que fora encenada por um discípulo deste, Jayme Valverde.

Projecto adiado

Apesar da grande aposta nesta criação, não era com a peça de Doug Wright que Júlio Cardoso queria assinalar as bodas de ouro da sua carreira. "O meu projecto era, já há dez anos, fazer o Rei Lear, de Shakespeare, encenado pelo [brasileiro] Ulysses Cruz. Mas isso continua adiado, fica para as calendas", lamenta, com visível mágoa.

Agora o actor está, contudo, de corpo e sentimentos todos virados para a figura de Charlotte Mahlsdorf. E para um tema que vem até a propósito, tendo em vista a polémica que actualmente se vive em Portugal sobre a legalização das uniões homossexuais. "Foi uma coincidência, não houve qualquer intenção premeditada", diz Júlio Cardoso, que se mostra defensor de uma legislação que "permita a qualquer pessoa viver e ser feliz, independentemente das suas escolhas sexuais, mas salvaguardando sempre a liberdade e a felicidade dos outros".

A partir de hoje (noite da estreia, às 21h45, após dois ensaios abertos ao público no final de Dezembro) e até meados de Fevereiro, Júlio Cardoso será, diariamente no Teatro do Campo Alegre, Charlotte von Mahlsdorf - "Fico sentado no banco dos réus, à espera da sentença do público".

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