As ilhas e a senhora Moreau
Jeanne Moreau, ontem, em Berlim: ainda a voz, aperfeiçoada a cigarros, e a boca, excessiva e simultaneamente a recusar tudo. Foi homenageada com um Urso de Ouro especial. Falou de Vadim, Fassbinder e do filme que vai dirigir, protagonizado por Juliette Binoche. Na competição, "Signs and Wonders", de John Nossiter, foi a primeira grande surpresa do festival, e "The Island Tales", de Stanley Kwan, a primeira decepção.
Nas ilhas gregas, um americano de vivência europeia, John Nossiter, tentou reinventar as regras do filme sobre o triângulo amoroso com um "cast" internacional - Stellan Skarsgard, Charlotte Rampling e Deborah Kara Unger - e com produção francesa. Dito assim, tudo afirmaria estarmos perante mais um exemplo de produto híbrido e desenraizado. Mas, como "Signs and Wonders" mostra, as aparências iludem, e quanto mais proliferam os sinais menos se cumprem as premonições. Vai ser esse o logro da personagem principal deste filme, que é a primeira surpresa da competição de Berlim, realizada por alguém que divide o seu tempo entre o gosto pelos vinhos (faz as listas de alguns restaurantes de Nova Iorque) e o cinema - depois de ter sido assistente de Adrian Lyne, o que também não podia ser lido como bom augúrio, fez um documentário sobre Quentin Crisp, "Resident Alien", de 1991, e em 1997 teve o Grande Prémio do Júri do Festival de Sundance com "Sunday". O herói dos tempos modernos de "Signs and Wonders" é um homem de negócios americano a viver em Atenas (Skarsgard), casado (com Charlotte Rampling), que olha o mundo como um livro aberto de signos e de coincidências para serem lidas, e que interpreta um encontro casual com a amante (Deborah Unger) como sinal para deixar a família. A partir daí, Skarsgard vai ser o protagonista de uma tragédia moderna, a de um homem encadeado pelo fogo-de-artifício que se apresenta como realidade. Rodado em vídeo e posteriormente transposto para película, "Signs and Wonders" é uma obra palpitante, que nos encadeia também com a saturação de imagens (as personagens sempre deformadas por espelhos, como se isso indicasse a dificuldade de elas existirem para além da imagem ou do reflexo) e nos obriga a percorrer, com esse triângulo amoroso, que entretanto se torna em quarteto infernal, um mundo indecifrável, o dos sentimentos, subitamente irreconhecível. E depois, transforma em seu favor um "cast" à partida exótico (melhor: difícil de ser "descodificado", é disso que trata este filme) e mostra-nos como Rampling nos fez esquecer, durante todo este tempo, como pode ser tão perturbantemente serena - e como o mistério de Unger, a "outra", não foi inventado por David Cronenberg em "Crash"."Signs and Wonders" chega para dar algum alento ao concurso desta 50ª edição, que, depois da abertura com "The Million Dollar Hotel", de Wenders, trouxe filmes de um realizador sérvio, de um realizador japonês e de um cineasta de Hong Kong. Em "Sky Hook", de Ljubisa Samardzic, um ex-basquetebolista de Belgrado, para distrair a família e os amigos das bombas da NATO (o filme passa-se no momento mais crítico dos bombardeamentos sobre a cidade), reconstrói um campo de basquetebol e organiza torneios durante o Verão. Tem intenções humanistas, mas o investimento cinematográfico é o de um telefilme com cenários de papelão. "Boy's Choir", de Akira Ogata, é uma primeira-obra. Passado nos anos 70 nos arredores de Tóquio, quer filmar as consequências, em dois rapazes de uma escola de canto, com ambições de fazerem parte dos Pequenos Cantores de Viena, dos movimentos de revolta estudantis que explodem na cidade. O problema é que Ogata faz um filme sobre ideais traídos e sobre pulsões amputadas com um rigor e com um pudor que muito rapidamente criam o seu academismo. Finalmente, e para já a decepcão da competição, "The Island Tales", de Stanley Kwan, um cineasta habitual da programação de Berlim (por onde passaram "Center Stage", "Red Rose White Rose" ou "Hold You Tight"). No seu filme anterior, "Hold You Tight", Kwan tinha mostrado sinais de romper com a - fabulosa - claustrofobia do seu cinema, que se concretizava em letais retratos de mulheres. Era um cinema de artifício, "glamouroso" e muito ritualizado, e o realizador quis abrir novos caminhos. Como "The Island Tales" evidencia, está a vestir uma roupa que não é a dele. Filmando um grupo de personagens que ficaram isoladas numa ilha, devido a uma ameaça de epidemia - uma vedeta do cinema, um escritor doente a recuperar de tuberculose, uma fotógrafa e outras almas perdidas -, parte para uma série de lugares comuns sobre a solidão na era da comunicação. Irritantemente afectado e involuntariamente "camp", mostra Stanley Kwan a aproveitar a "onda" Wong Kar-wai.Para esta sensualidade que se quer doentia (há sempre a sugestão nos cenários de "The Island Tales" de uma estufa venenosa) mas que acaba por ser apenas superficial e auto-indulgente, houve ontem uma resposta: a voz de Jeanne Moreau, ainda a voz, aperfeiçoada a cigarros, e a boca, excessiva e simultaneamente a recusar tudo. A actriz francesa foi ontem homenageada com um Urso de Ouro especial, já que, para além dos filmes e da carreira, "se há alguém que corporiza hoje as ambições e ideais do cinema europeu, do que isso quer dizer é Jeanne Moreau", disse o director da Berlinale, Moritz de Hadeln."Let's be europeans then", começou ela na conferência de imprensa, dizendo que os seus pensamentos naquele momento iam para Roger Vadim, de cuja morte tinha acabado de ter conhecimento e que a dirigiu em "Ligações Perigosas" (ver página 31). Por isso o nomeou, já que, disse, não podia explicar a relação com os cineastas com quem trabalhou porque "o trabalho entre um actor e um realizador é qualquer coisa de muito íntimo, é uma empatia, algo que está no ar, não se pode explicar". Esteve para além da verbalização a sua relação com Rainer Werner Fassbinder na rodagem de "Querelle". Nunca se falaram, e isso, disse, "foi extraordinário, porque os grandes realizadores nunca falam".Que emoções sente quando se vê nos filmes antigos? "Com a distância do tempo, consigo esquecer-me de mim e apreciar o talento do realizador. Não é emocional, é profissional. Claro, vejo ali uma rapariga, lembra-me como eu era e que agora sou mais crescida e que, afinal, não me dei muito mal."Realizadora de duas longas-metragens, "Lumiére" e "L'Adolescente", Jeanne Moreau anunciou que, depois de encenar uma peça em Paris, se prepara para dirigir um terceiro filme no Outono, adaptando um argumento que Jean Renoir escreveu para ela em 1971. "Jeanne et son Amant" será um filme com Juliette Binoche. Mas, a propósito, cita Renoir ao dizer que nunca dirigiu nada na sua vida, que é "uma rolha na corrente". Uma "leaving legend", portanto, como se diz nestas ocasiões. "Bem, viva eu estou."