Já chega de ar miasmático, mesmo que essa seja a nossa condição quotidiana. Vou para a turris eburnea, enquanto posso e me deixam.
Para resistir à tentação olho em volta, para o mar de papel que me envolve e, já que não quero fazer as perguntas do dia, faço as da noite. Que vale isto tudo, o imenso esforço que milhares de pessoas fizeram para escrever estas centenas de milhares de livros, dos quais 99,999% não tem o mais pequeno interesse para ninguém hoje, está esquecido e não é lido por nenhum mortal há cinquenta anos, se é que alguma vez foi lido por alguém além do autor? Ou estas dezenas de milhares de jornais relatando eventos que cem pessoas conheceram no seu tempo, e hoje ninguém lembra, ou os milhares de esforçados artigos de opinião, cartas à redação, discursos de circunstância, que não disseram nada, não mudaram nada, nunca mais vão servir para rigorosamente nada? Ou estes panfletos pedindo coisas impossíveis, escritos em linguagem profética ou de “pau”, que foram sempre mais um ritual do que outra coisa qualquer?
A resposta filosófica é simples e imediata: nada, não valem nada. Aliás essa resposta comunica com a mesma resposta quanto à vida, ou se se quiser ir mais longe, ao sentido. Não tem sentido. A resposta histórica ainda é mais cruel, é como se não existissem. Não são sequer uma alínea de uma alínea. Algum deste material é reciclado em teses e trabalhos universitários, apenas porque há uma indústria que vive de dar relevância ao irrelevante e os intelectuais, quando não se metem a defender o Dreyfus, são bons nisso
Como muita da acção humana, a que fez estes livros e papéis ficou presa nos seus autores e passou com tanta pressa como a sua vida. É verdade que em termos de átomos vale muito, porque o espaço que tudo isto ocupa é enorme para um particular e já também enorme para uma pequena instituição. Porém, se eu tivesse possibilidade de digitalizar tudo e passar dos átomos aos bits a coisa é ridiculamente pequena: o meu disco duro de dois terabites pode armazenar 150 milhões de páginas, ou seja cabe lá tudo e sobra imenso espaço. (Nota: os números citados a seguir têm fonte em estudos cujos resultados apresentam alguma variação entre si, pelo que devem ser vistos como indicativos.)
Para se perceber bem a nossa dimensão enquanto produtores de palavras e gasto de papel, pensar em termos digitais é muito instrutivo. A Biblioteca do Congresso, a maior do mundo, tem pouco mais de 10 terabites em livros e jornais e, se acrescentarmos mapas, fotografias, imagens, som, filmes e vídeo, deve ficar para cima de 3 petabites, cerca de 3000 terabites. A necessidade de arquivar muita da nova realidade de informação digital, por exemplo o Twitter, está a fazer crescer estes números de forma muito rápida, mas de novo, contínua comportável e muito pequeno o total desse arquivo. Os problemas de encontrar formas úteis de procura, consulta e acesso são muito mais complicados dos que os da dimensão em bits.
A Internet contém muito mais do que muitas Bibliotecas do Congresso, incluindo o boom de fotografia digital e a sua colocação em páginas de Facebook, mas também não é nada de incomportável, tanto mais que está fisicamente armazenada em computadores cuja capacidade está muito abaixo da capacidade dos meios de armazenamento existentes por todo o lado, quer em grandes computadores com aplicações cientificas, militares, ou financeiras, quer em discos duros junto de computadores individuais e de pequenas empresas. Hoje comprar um disco de um ou dois terabites, muito mais do que qualquer mortal precisa a não ser que seja músico, fotógrafo, designer gráfico ou cineasta amador, é trivial. A maioria das lojas de produtos informáticos em Portugal, oferecem estes discos como regra e não como excepção, o que significa que vários backups da Biblioteca do Congresso podem ser feitos sem dificuldade.
Mas a comparação ainda é mais provocatória para a nossa ideia de superioridade humana se tivermos em conta que as experiências com o MyLifeBits e outros processos de medição das nossas memórias físicas cabem em poucos terabites, à volta de 3 terabites, embora pareça haver um potencial virtual muito superior que se aproxima de um número mil vezes maior, devendo ter-se em conta que o cérebro não é um computador, por muito tentadora que seja a comparação. Mesmo assim, se tudo o que pensamos, tudo o que ouvimos, tudo o que lemos, tudo o que sentimos, pudesse ser registado, e em grande parte pode, não dá lá um número muito grande, bem pelo contrário. Ou seja, espreme-se a “alma” de um ser humano e saem meia dúzia de petabites na melhor das hipóteses. Não é muito pois não?
Por isso, o mar de papel à minha volta, se se tivesse que se justificar, teria muitas dificuldades. O que é que A Toutinegra do Moinho tem a seu favor para existir? Ou as cartas em verso de Olegário Mariano a Silva Tavares? Ou o D. Francisco Manuel, drama histórico em verso em quatro actos de Rui Chianca? Ou os Imortais do Amor de Sousa Costa? Ou pior ainda, o que é que tem a seu favor para serem guardados? Ou muito pior ainda, o que é que tem a seu favor para serem catalogados, ou a sua capa digitalizada, que é a forma menos trabalho-intensiva que tenho para registar existências?
Volto à pergunta inicial, que vale tudo isto? Podia repetir a resposta: nada. Só Jorge Luís Borges era capaz de dar uma resposta diferente, porque ele sabia que nós não seriamos os mesmos sem todo este magma de papel, mesmo que se seja analfabeto, mesmo que nunca se leia. Pode ser que todo este papel seja pouco mais do que um cabinet de curiosités moderno, feito de livros que ninguém lê, ou que não valem nada por qualquer critério literário ou cientifico: Mas todos eles nos falam com uma cacofonia que é também um espelho da nossa voz. Eles são uma parte da “voz comum”, para lá da incomum que conhecemos como arte e literatura.
Sobre Borges escreveu-se que a “erudição é uma forma moderna do fantástico” ou seja é uma forma de criação mesmo que não use, nem mereça esse nome. Por isso as bibliotecas, mesmo mortas, como são na maior parte todas as grandes bibliotecas, são uma construção humana ímpar. Se há civilização, é aqui que está, também nos pobres versos de todos estes humanos que tiveram a enorme presunção de escrever livros, nem que seja para dar uso às palavras. É que às vezes, contrariamente ao que dizia o meu antigo professor de Religião e Moral, a função faz o órgão.