Será que as “pirâmides” da vinha do Pico já lá estavam quando os portugueses chegaram?
Depois da alegada descoberta de túmulos escavados na rocha por fenícios e cartagineses na Ilha Terceira, a mesma equipa de arqueólogos vem agora defender que os maroiços das vinhas da Madalena do Pico podem ter sido construídos muito antes do século XV. A polémica não tardou.
Nuno Ribeiro, da Associação Portuguesa de Investigação Arqueológica (APIA), e a sua equipa vão mostrar a partir das 21h por que razão acreditam que muitos dos grandes amontoados de rocha vulcânica que tornam absolutamente singular a paisagem da vinha na Ilha do Pico terão sido construídos muito antes de os portugueses chegarem ao arquipélago, em 1427. Desde Janeiro que estes arqueólogos visitam o local marcado por estes montes de rocha que ali se conhecem por maroiços, fazendo levantamentos e prospecção. É precisamente com base nos materiais que recolheram à superfície, conjugados com a monumentalidade e configuração de algumas das estruturas identificadas, que defendem que estas “pirâmides” – é assim que por vezes lhes chamam - podem ser obra de culturas aborígenes, semelhantes às do norte de África ou das Canárias.
Nos blogues e fóruns de arqueologia online estas conclusões já foram classificadas como precipitadas ou simplesmente fantasiosas. Quem as contesta diz que lhes falta sustentação científica e que os autores do novo estudo estão a ignorar fontes históricas determinantes e uma sólida investigação arquitectónica e etnográfica que fez parte da candidatura da cultura da vinha da Ilha do Pico à UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), que a considerou património mundial em 2004.
Nuno Ribeiro conhece o inventário realizado e o levantamento cartográfico daquela paisagem, mas defende que falta interpretar as “estruturas piramidais” do ponto de vista arqueológico. Para este membro da APIA, a explicação tradicional para a formação destes maroiços – a rocha que resultou da erupção do vulcão seria retirada do chão e amontoada de forma a obter uma área maior de cultivo – não pode explicá-los por completo. “Por que razão para amontoar pedras precisamos de estruturas piramidais que chegam a ter mais de dez metros? Não faz sentido”, diz ao PÚBLICO. Além disso, algumas têm “corredores estreitos, câmaras e portas”, que “indiciam” possíveis usos funerários.
“Encontramos estruturas proto-históricas [período que se segue à pré-história mas que é anterior ao da história documentada] semelhantes no norte de África e noutras culturas aborígenes como a guanche, nas Ilhas Canárias. Mas ainda é muito cedo para dizermos exactamente o que são e quando foram construídas, precisamos de estudar mais os materiais e de fazer datações precisas”, admite o arqueólogo.
Os materiais a que se refere são vestígios do que pode ter sido o piso de uma cabana, raspadeiras, pontas de metal e pesos de rede, “todos incompatíveis com uma construção posterior à chegada dos portugueses”, argumenta.
Ana Margarida Arruda, arqueóloga e professora da Faculdade de Letras de Lisboa, e Élvio Sousa, um especialista em arqueologia da Expansão que tem trabalhado muito na Madeira e nos Açores, estão entre os que duvidam das interpretações da equipa da APIA, embora ressalvem que não conhecem ainda o estudo que vai ser apresentado hoje.
“Não conheço os tais maroiços do Pico ao vivo, mas todas as teorias que agora li nos jornais me parecem ignorar fontes históricas importantíssimas que nos dizem, que à chegada dos portugueses, as ilhas estavam desabitadas. Ora, se aquelas estruturas são uma construção humana… Tudo aquilo é uma fantasia”, diz Arruda, que em Abril visitou a Ilha Terceira a pedido da UNESCO e da Direcção-Regional de Cultura dos Açores para fazer uma espécie de peritagem às alegadas descobertas da APIA no Monte Brasil – túmulos escavados na rocha (hipogeus) e templos que atribuíam a fenícios e cartagineses – e no Espigão (monumentos megalíticos).
“Aqui, como na Terceira, parece-me que há uma interpretação desviada da realidade. Os materiais que foram recolhidos, por exemplo, como os anzóis ou os pesos, são incompatíveis com usos cerimoniais, ritualistas. E populações aborígenes que vão para o Pico construir pirâmides? Mas quando? E como?”, pergunta esta arqueóloga, para quem os maroiços são estruturas notáveis, “soluções arquitectónicas de grande inventividade”, já muito estudadas e documentadas.
Tal como Arruda, Élvio Sousa, que é também investigador do Centro de História de Além-Mar (CHAM) da Universidade Nova, sublinha que a arqueologia é uma ciência, que se baseia em dados concretos estudados e que “precisa de tempo”.
“Não conheço o estudo feito por estes arqueólogos, mas estas estruturas, que se encontram também na Terceira e em São Miguel, podem ter funções várias”, explica. “Nestas duas ilhas estão associadas a grandes quintas, a propriedades senhoriais, e podiam ser usadas como mirantes”, acrescenta o arqueólogo ligado ao CHAM que trabalha para a autarquia madeirense do Machico, duvidando que sejam anterior à chegada dos navegadores portugueses. “Não há dados científicos nenhuns, concretos, que apontem para um povoamento dos Açores prévio aos portugueses. Sabemos que os arquipélagos [Madeira e Açores] eram conhecidos, mas ninguém aqui vivia. Nas Canárias, por exemplo, que também são de origem vulcânica, estes maroiços têm utilizações agrícolas.”
Nuno Ribeiro já esperava a contestação quando resolveu dar conta das primeiras conclusões, mas garante que quer aprofundar os trabalhos nas vinhas do concelho da Madalena, onde estão identificados mais de 100 maroiços. “Algumas destas estruturas serão obviamente mais recentes, sabemos disso – há muros, arrumos para o gado… Mas dizer que são todas posteriores ao século XV é outra coisa. E será coincidência que cerca de 70 destas pirâmides tenham uma orientação no terreno relacionada com os solstícios de Inverno e de Verão?”
A APIA quer continuar a investigar estas “pirâmides” da vinha do Pico e espera que novos dados tragam confirmações. Mas só depois de Outubro Nuno Ribeiro saberá que rumo tomarão os trabalhos.