Porque continuamos a não consumir Cultura? Falta de Educação e dinheiro
Os portugueses são dos cidadãos da União Europeia com menores taxas de participação em actividades culturais, segundo o relatório do Eurobarómetro. São números que “não nos ficam bem”, diz o secretário de Estado da Cultura. Falta de investimento, fraca aposta na educação e baixo poder de compra explicam parte destes resultados dizem diversos especialistas e responsáveis.
Estas são as principais conclusões que se tiram depois de se ouvirem vários nomes reconhecidos da área. Há quem se surpreenda com os números, quem já estivesse à espera destes dados por estarem em linha com a tendência dos últimos anos e quem questione a forma como o inquérito da Comissão Europeia foi realizado. Mas há um adjectivo que todos repetem: “preocupante”.
Sermos tão pouco activos culturalmente é preocupante e é preciso perceber o que está a acontecer com a Cultura em Portugal. O que implica também questionar o estado da Educação e do sistema de ensino, dizem. Afinal, porque é que os portugueses são dos cidadãos da União Europeia com menores taxas de participação em actividades culturais? Porque é que Portugal, por exemplo, é o país onde há maior falta de interesse pela leitura? E porque é que só 6% dos inquiridos, em Portugal, tem uma actividade cultural frequente? A média europeia não é particularmente alta mas as diferenças são grandes, como é o caso da Suécia (43%), da Dinamarca (36%) e dos Países Baixos (34%), onde os cidadãos descrevem a sua taxa de participação como elevada ou muito elevada. Na vizinha Espanha esta taxa é de 19%. Qual é então o problema dos portugueses?
“É uma questão de educação”, diz ao PÚBLICO Paulo Cunha e Silva, programador cultural e novo vereador da Cultura da Câmara do Porto, que acredita que em Portugal “não se cultiva a Cultura”. “'De pequenino se torce o pepino.' Este ditado popular explica esta situação com eficácia, é na infância que se devem começar a criar hábitos culturais e isso não acontece”, defende Cunha e Silva, que deste Eurobarómetro se surpreendeu mais com a fraca adesão às salas de cinema.
Os dados do inquérito revelam que 71% dos cidadãos portugueses não foram uma única vez ao cinema nos últimos 12 meses – uma diferença de quatro pontos percentuais quando comparado com os dados de 2007 (ano do último Eurobarómetro sobre a participação em actividades culturais). Segundo os últimos resultados divulgados pelo Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA), de Janeiro até Outubro registaram-se menos 1,2 milhões de espectadores nas salas de cinema portuguesas, o que representa uma quebra de 10,6% em relação ao mesmo período de 2012. A queda já vem do ano passado mas em 2013 tem vindo a acentuar-se.
“A não frequência das salas de cinema com esta dimensão é preocupante e é um indicador muito grave da crise social que estamos a atravessar, é que ir ao cinema não é só ver filmes de autor”, diz o vereador da Câmara do Porto, que vê no cinema uma das formas mais fáceis e populares de participar na Cultura. “Na sua dimensão de diversão e animação, o cinema poderia até funcionar como um escape para alguma tristeza ou depressão e por isso a não frequência das salas traduz uma expressão muito profunda da crise”, continua Cunha e Silva, considerando que é preciso parar para reflectir de que forma “este momento de patologia social que estamos a atravessar se está a reflectir nos hábitos das pessoas”.
Números que chocam
Para a professora catedrática da Faculdade de Letras do Porto e antiga ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima, é uma questão de escolha a que a crise económica e social obriga. “Temos uma crise geral no consumo, que provoca, evidentemente, uma quebra no consumo cultural, até porque é neste que se corta habitualmente em primeiro lugar”, diz Pires de Lima, explicando que “entre gastar dez euros no supermercado ou na livraria, o cidadão comum não escolhe gastar cinco euros num lado e cinco euros noutro, gasta tudo no supermercado”. O mesmo exemplo é dado pelo escritor Vasco Graça Moura, que diz haver uma “opção óbvia” quando se trata de escolher entre “alimentar um filho ou ir a um concerto”. “A crise financeira obriga a prioridades rigorosas”, diz o presidente do Centro Cultural de Belém (CCB), não escondendo, no entanto, que, até ver os resultados do Eurobarómetro, pensava que “estávamos muito melhor”. “De algum modo, estes números chocam-me”, continua Graça Moura, para quem o problema da queda da leitura “está a tornar-se crónico em Portugal”. "Temos de dar mais atenção ao Plano Nacional de Leitura. É importante e pode ser uma ajuda."
Segundo os números do inquérito, apenas 40% dos portugueses leram um livro no ano passado, uma taxa significativamente mais baixa do que a média europeia, que é de 68%. Se olharmos para os países nórdicos, a diferença então é esmagadora: na Suécia 90% dos cidadãos leram um livro no ano passado e na Dinamarca a taxa é de 82%. De resto, a actividade cultural mais comum na União Europeia, e em Portugal, é assistir/ouvir programas na televisão/rádio (72% pelo menos uma vez nos últimos 12 meses – em Portugal 61%).
No que respeita à leitura de um livro, o relatório diz que os resultados são “fortemente” influenciados pelo nível de escolaridade, assim como, por exemplo, a idade se reflectiu como um factor determinante naqueles que vêem mais televisão ou ouvem rádio.
“A ideia com que fico depois de ver estes números é a de que ainda há muito a fazer, mas deixa algum optimismo perceber que são os mais velhos que estão mais tempo ligados à televisão e à rádio”, diz Fernando Pinto do Amaral, comissário do Plano Nacional de Leitura, explicando que “os mais novos são mais diversificados e dividem o tempo entre a leitura, o computador, o cinema”. “Ainda há alguma razão para pensar que nos mais novos a leitura ainda existe, enquanto nos mais velhos é mais complicado conseguir mudar hábitos”, explica. “As pessoas estão muitas vezes em casa, com poucos recursos financeiros, e a televisão é um meio muito fácil e directo que entra pela casa dentro”, continua Pinto do Amaral, para quem o cerne da questão é o “nível geral de educação do país e do interesse pela Cultura”. Ou, como diz Vasco Graça Moura: “Em Portugal há uma certa apatia por valores culturais”.
A deputada socialista e antiga ministra da Cultura, Gabriela Canavilhas, responsabiliza o discurso político actual que remete para segundo plano as actividades culturais. “A falta de importância que é dada à Cultura hoje é terrível. O discurso político que passa para os cidadãos é o de que não nos podemos preocupar com a Cultura quando há gente a passar fome, e esta é a mensagem que todos os dias se transmite para a opinião pública”, diz Canavilhas, que não tem dúvidas de que um “cidadão vulgar facilmente reproduz este discurso, quando há uns anos era do senso comum que a Cultura era importante para o quotidiano dos portugueses”.
“É preciso não deixar esmorecer o esforço que foi feito nestas últimas três décadas e que conquistou muitos degraus nos hábitos de consumo cultural, é que o que leva três décadas a ser construído, leva dois ou três anos a ser destruído”, alerta a deputada socialista, que vê na Educação a “chave para a mudança”. “Os indicadores da Cultura estão sempre ligados aos indicadores da Educação. Os países onde os hábitos culturais são mais consistentes são aqueles onde os níveis de Educação são mais elevados”, continua Canavilhas, explicando que investir na Educação é investir na Cultura. No entanto, a antiga ministra da Cultura do Governo de José Sócrates lamenta que além do desinvestimento que a Cultura enfrenta, também a educação esteja “num retrocesso sem precedentes”.
Isabel Pires de Lima dá o exemplo, recorrendo aos resultados deste inquérito, da frequência de bibliotecas públicas. Em Portugal, apenas 15% dos cidadãos visitaram uma biblioteca no último ano, registando-se uma quebra de nove pontos percentuais. Na Europa, a média é de 31%, também se verificando uma queda comparativamente com 2007, neste caso de quatro pontos percentuais. “É gravíssimo que haja uma quebra de nove pontos percentuais, tendo em conta o investimento bárbaro que se fez na rede de bibliotecas públicas”, aponta Pires de Lima, destacando que “no momento em que o país está quase coberto de equipamentos culturais, não seria de esperar uma quebra tão acentuada”. “Quando se investe barbaramente na Educação e não se percebe que investir um bocado mais em Cultura potenciaria imenso esse investimento em Educação, acontecem coisas como esta”, diz.
Para o presidente do Centro Nacional da Cultura, Guilherme d’Oliveira Martins, não há outra forma de conseguir reverter estes números que não seja a aposta no sistema de ensino. “É preciso que os pedagogos compreendam, e muitas vezes não compreendem bem, que a Educação artística está no princípio e não fim”, diz Oliveira Martins, defendendo que “a Cultura não é uma flor de botoeira, é algo que está no centro do desenvolvimento”.
Ao PÚBLICO, o secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier, reconhece que “estes números não nos ficam bem” e defende a necessidade de se reforçarem as políticas educativas com as políticas culturais. “Temos de ter em conta estes dados para reforçar a minha convicção de que a dinâmica de colaboração entre a área da Cultura e a área da Educação, desde o pré-escolar até ao ensino secundário, é absolutamente essencial”, diz Barreto Xavier.
No Parlamento, a 7 de Novembro, Barreto Xavier apresentou a Plataforma Educação-Cultura que pretende, precisamente, ser o eixo de desenvolvimento de políticas estruturais para as duas áreas. Será da responsabilidade desta Plataforma, por exemplo, o Plano Nacional de Cinema, que pretende promover a literacia para o cinema nas escolas, impulsionando a criação de novos públicos. Apesar do atraso na sua implementação, não estando ainda a funcionar em pleno, este foi um dos exemplos enumerados ao PÚBLICO pelo Ministério da Educação e Ciência (MEC), que garantiu que “vai continuar a reforçar, a incentivar e a apoiar programas de carácter cultural e sobretudo a valorizar os conteúdos de temática cultural nos programas, metas e orientações curriculares, manuais escolares e outros recursos didáctico-pedagógicos”. Continuar-se-á também “a sensibilizar todos os agentes educativos para a importância da presença da Cultura, nas suas diversas formas”, acrescenta a resposta do ministério, onde se lê que os baixos índices de participação cultural se devem à “falta de escolarização e literacia das gerações seniores, que não foram incentivadas nem educadas para isso”.
“A evolução do sistema educativo português, dos índices de escolarização e de analfabetismo nos últimos 30 anos permitem compreender os resultados”, lê-se ainda na resposta, por email, do gabinete de comunicação do MEC, que acredita que nos próximos anos, “com base no desenvolvimento dos currículos em vigor no sistema educativo, poderemos vir a testemunhar uma inversão desta tendência”.
Cultura invisível
No entanto, o sociólogo Claudino Ferreira alerta que uma maior introdução das artes ao ensino geral “não exige só que se ponham mais conteúdos”. “É preciso que se pense como é que a relação com as artes nas escolas pode ser motivadora para os estudantes se interessarem”, diz o professor auxiliar da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e investigador do Centro de Estudos Sociais, defendendo também uma maior pró-actividade das estruturas culturais e artísticas. “Não há só muito a fazer por parte das escolas e dos professores, é preciso que também as instituições e os artistas apresentem propostas concretas para contribuir para os estudantes”, continua o sociólogo, admitindo, porém, que os tempos são de dificuldade para as estruturas. “A situação dos últimos anos é dramática e, por isso, quando olho para a frente vejo uma situação muito difícil para a Cultura”, explica Claudino Ferreira, lembrando a constante reformulação de prioridades a que as instituições culturais e os artistas têm vindo a ser obrigados. “E assim vão perdendo alguma capacidade de intervenção pública e desse ponto de vista os próximos anos não serão muito produtivos, não consigo ver uma recuperação do interesse e do voluntarismo para a prática cultural.”
Para Isabel Pires de Lima a dificuldade de que Claudino Ferreira fala existe por “continuarmos presos a modelos de desenvolvimento que privilegiam sobretudo aquilo que é imediatamente rentável e aquilo que decorre do mundo do que é contabilizável”. “É a invisibilidade da Cultura que faz com que seja tão difícil aos políticos, empresários e sociedade civil investirem na área”, diz a catedrática, sem acreditar numa mudança no futuro. O mesmo acontece, aliás, com Gabriela Canavilhas, que antevê uma descida ainda maior destes valores nos próximos anos. “Vamos sofrer nas estatísticas as consequências das políticas que têm estado em curso”, afirma a deputada do PS.
Barreto Xavier não se atreve a antecipar o futuro mas admite que há um problema de perspectiva e modelo. “É uma questão de mudança de mentalidades e a mudança de mentalidades demora eventualmente uma geração”, diz o secretário de Estado ao mesmo tempo que de alguma forma desvaloriza os números deste inquérito por existirem variáveis que não foram consideradas e pelo modo como algumas perguntas foram feitas.
No mesmo sentido, Miguel Lobo Antunes, administrador da Culturgest, em Lisboa, defende que os números deste Eurobarómetro não são fiáveis nem podem apoiar reflexões sérias por se afastarem, "por vezes largamente", de resultados de outras estatísticas feitas em Portugal sobre o mesmo tema. Mas revela que tem sentido na Culturgest uma redução de público. “Para que os portugueses sejam mais cultos, é claro que a educação, os meios de comunicação, as políticas culturais, têm uma importância fundamental mas também é importantíssimo o papel desempenhado pelos teatros, pelos centros culturais, pelos programadores, pelos artistas, pelos pais, pelos mais velhos, pelas pessoas, que podem contagiar outras”, diz Lobo Antunes.
Catarina Vaz Pinto, vereadora da Cultura da Câmara de Lisboa, vê com a preocupação generalizada estes números mas destaca que eles não são desagregados por cidades e/ou regiões, onde acredita que poderão existir diferenças importantes. “Nomeadamente em virtude das características sociodemográficas da população ou do investimento que algumas cidades têm feito, como por exemplo Lisboa, para manter o nível da oferta e participação cultural, da promoção da leitura e da valorização das bibliotecas municipais”, atesta a responsável.
Guilherme d’Oliveira Martins volta a destacar: “Ainda há muito trabalho a fazer”. “Temos de tirar lições da crise porque esta crise diz-nos que se não apostarmos na Educação, na Cultura e na Ciência, teremos naturalmente grandes dificuldades.”
No que ao secretário de Estado da Cultura diz respeito, fica o compromisso de “trabalhar mais e melhor na defesa de um modelo de desenvolvimento que tenha a Cultura no seu centro”.