Para desformatar o IndieLisboa
Programar fora do formato da ficção indie. Enfrentar, mais cedo ou mais tarde isso teria de acontecer, a paragem da produção nacional. Celebrar a secção IndieJúnior, educação cinéfila dos futuros frequentadores do festival. Um retrato da programação da 11.ª edição, que é apresentada esta terça-feira.
" Esgotado" um certo modelo de ficção dita "independente" que vem dominando, bem acabadinha, confortável e aconchegante (portanto não independente da formatação…), e que ainda continua a ser o porto seguro dos festivais, os programadores desta edição tentaram passar ao largo do cansaço acumulado. Asseguram que arriscaram. Nas formas híbridas – talvez até entusiasmados pela presença, e vitória, no ano passado de Leviathan, de Lucien Castaing-Taylor e Véréna Paravel, isto é, terreno movediço entre a ficção e o documentário, ou na associação da imagem a uma voz off.
O IndieLisboa anuncia esta terça-feira a programação da sua 11.ª edição, mas Nuno Sena, programador, destaca já na Competição Internacional de longas-metragens, experiências mais desformatadas como Mouton, de Gilles Deroo e Marianne Pistone, Mambo Cool, de Chris Gude, Quand Je Serais Dictateur, de Yaêl André, ou Beleville Baby, de Mia Engberg. Foi preciso, nesta categoria, questionar grande parte do catálogo disponível de mais de mil filmes inscritos. Já na secção de Curtas-Metragens, competição internacional, o que se ofereceu à escolha dos programadores vinha já possuído por uma vontade de ultrapassar formatos. Por exemplo, a minutagem dos filmes ditos curtos, que se alonga, tornando a média-metragem um "formato muito específico", segundo o programador Miguel Valverde. Por isso, para dar espaço a filmes mais longos, e para se saborearem todas as consequências disso, foram reduzidos, em cerca de uma dezena, as participações no concurso. "Foi um ano muito bom", conclui Valverde.
Não pode ser essa a conclusão na Competição Nacional de Longas-Metragens: para já, apenas três títulos. Talvez, dizem os organizadores, um ou dois possam ainda ser acrescentados, mas certo é contar apenas com O Novo Testamento de Jesus Cristo, de Joaquim Pinto e Nuno Leonel, Alentejo, Alentejo, de Sérgio Tréfaut, e Revolução Industrial, de Tiago Hespanha e Frederico Lobo. As consequências da paragem da produção cinematográfica mostram-se agora. Se se olhar para a lista do concurso de curtas nacionais, só aparentemente o cenário leva a uma conclusão diferente. Certo, há quase duas dezenas de títulos. Mas, como notam os programadores, foram os EUA, a França, o Reino Unido, a Suíça ou a Alemanha que tornaram possível, por exemplo, os filmes de Diogo Costa Amarante, Ico Costa, Gabriel Abrantes, Margarida Rego, António da Silva, Carina Freire ou Rita Macedo.
Suspendam-se agora as consequências nefastas de uma interrupção e gozem-se os efeitos produtivos de um fluxo: com a comemoração, este ano, dos dez anos da programação IndieJúnior, o festival celebra não só uma secção que é responsável por cerca de um quarto dos seus espectadores (as escolas preenchem as sessões da manhã, hora a que o público dito "normal" ainda não frequenta o festival), como uma secção que está a ter responsabilidades de formação cinematográfica de um público. Realçam Sena e Valverde que o IndieJúnior, em que se aplica à programação os mesmos critérios utilizados para os filmes dos mais adultos ("Os filmes do IndieJúnior não são diferentes dos outros do IndieLisboa, são é mais adequados à idade"), está a revelar-se o início de uma educação cinéfila, um viveiro dos futuros espectadores do festival. Crescem e passam a espectadores do IndieLisboa, como dizem os testemunhos de quem há dez anos tinha sete ou oito anos que vão ser mostrados no âmbito da programação de aniversário.
Na secção Director’s Cut, James Benning e Richard Linklater são um inesperado par em Double Play, de Gabe Klinger; o belíssimo Bertolucci on Bertolucci , de Luca Guadagnino e Walter Fasano, vai dar vontade de regressar à violenta sensualidade que já esteve num distante Bertolucci (mas que se voltou a sentir no último Io e Te ou na curta que realizou para o projecto Future Reloaded , a encomenda do Festival de Veneza para celebrar a sua 70.ª edição) ; a versão 3D de Dial M for Murder, de Hitchcock, será um dos títulos a assinalar a entrada do formato na programação do Indie (o outro é 3X3D, a encomenda de Guimarães Capital da Cultura a Peter Greenaway, Godard e Edgar Pêra, a ser exibido na secção Observatório); para saciar o culto a Leos Carax, Mr Leos Carax, de Tessa Louise-Salomé; ainda Refúgio e Evasão, de Luís Alves de Matos, sobre Seixas Santos.
Na secção Observatório, na qual estão os mais consagrados e os habitués, chamam ainda à atenção Werner Herzog, Corneliu Porumboiu, David Gordon Green, Hong Sang-Soo, Johnnie To ou Catherine Breillat (Abus de Faiblesse é uma forma de autobiografia como narrativa de desapossamento: o AVC que vitimou a realizadora, o encontro com um escroque que lhe levou todo o dinheiro, Isabelle Huppert a fazer de Breillat e Breillat a filmar como sentiu que tudo se passava: como se estivesse a acontecer a outro, como se fosse um filme… de Catherine Breillat).
Esteve dois anos interrompida, o fluxo é retomado este ano: a secção Herói Independente. A obra da cineasta Claire Simon vai ser objecto de uma retrospectiva, cabendo-lhe as honras de abertura do festival, com Gare du Nord (2013). Faz sentido que assim seja. Esse título, rodado na maior estação de comboios da Europa, deve ser visto em companhia de outro, Géographie Humaine (2013), para assim se diluírem mais as fronteiras da ficção (que não é suficiente para prender aquele primeiro título do díptico) e do documentário (a base do segundo). Assim se iluminam as ficções do real que estão no interior dos filmes de Simon, assim se dá o pontapé de saída a um festival que sente necessidade de se desformatar. No filme de encerramento, Tom à la Ferme, de Xavier Dolan, há qualquer coisa também de superação – ou tão-só o suposto enfant terrible cresceu.