O mundo não acaba hoje, porque o fim do mundo somos nós

Hoje o mundo pode acabar. Mas não nos esqueçamos que o mundo já acabou e vai continuar a acabar mais vezes. Onde? No cinema, nos livros, na música, nas ideias, dentro de nós.

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"A Guerra dos Mundos": H.G. Wells por Steven Spielberg DR
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"Melancolia", de Lars Von Trier, é um furioso desejo de desastre que precipita o fim DR
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O pós-apocalipse também está animado por estes dias, como acontece na série "The Walking Dead", onde os zombies são a ameaça dos homens DR
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"Perdidos", uma das séries de TV mais iconográficas da última década, em que um grupo de personagens se encontra sem noção de espaço e tempo DR
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A natureza castiga-nos dos excessos, como é representado em "Avatar" de James Cameron DR

Em 1980 o escritor americano Philip Roth encontrou-se com o também escritor checoslovaco Milan Kundera para uma conversa que viria a ser publicada no livro Entre Nós do primeiro, que reúne ensaios e entrevistas feitas por Roth a outros escritores.

Às tantas Roth pergunta a Kundera se acha que o fim do mundo está para breve, ao que o segundo responde: “Depende do que quer dizer em ‘breve’." Roth insiste: “Amanhã ou depois de amanhã.” “A sensação de que caminhamos para a destruição é muito antiga”, riposta Kundera. “Quer dizer que não temos motivo para preocupações?”, teima Roth. “Ao contrário”, diz Kundera. “Se esse receio existe entre nós há séculos, deve haver algo por trás dele.”

Desde as origens da literatura ou da ciência que as devastações que farão desaparecer o mundo são uma obsessão humana. O livro mais icónico da cultura ocidental, a Bíblia, termina precisamente com uma revelação, o Apocalipse, escrita por S. João, na qual o visionário prevê uma batalha arrasadora, originada por forças celestiais e destinada a fazer desaparecer uma humanidade pervertida, para dar lugar a uma outra. Mas existem alturas em que essa fixação parece tornar-se mais insistente.

21 Dezembro de 2012. Hoje. Segundo algumas leituras, é a data fixada pela civilização maia para o fim do mundo. Independentemente do que possamos pensar sobre essa leitura, “a verdade é que esse tipo de prenúncios simbolizam e cristalizam a angústia real das nossas sociedades modernas, atingidas por crises económicas, climatéricas, existenciais”, reflecte o filósofo francês Michael Foessel (Après la Fin du Monde, 2012).

Motivos para angústias na última década não faltaram (vacas loucas, gripe das aves, porcos e crises pandémicas, terrorismos, aquecimento global ou crise financeira) e, como sempre, esse ambiente de catástrofe foi antecipado, reflectido ou amplificado pelas ficções, sejam cinematográficas, literárias ou musicais.

Quando, em 1982, Ridley Scott filmou o futurista Blade Runner e mostrou uma Los Angeles devastada pela chuva ácida, fechada em si mesma, e obscurecida por nuvens de gases, aquele futuro (Novembro de 2019) parecia tão distante e poético que poucos se atreveriam a considerá-lo possível. Agora a sete anos dessa fantasia o mundo parece degenerar tanto que essas imagens, por um lado surpreendem-nos menos, por outro sobressaltam-nos mais, porque a ficção parece-nos cada vez mais próxima do real.

Às vezes o que nos atrai no conceito de fim do mundo é ele poder representar uma ideia de recomeço. É disso que fala o realizador alemão Roland Emmerich que gosta de destruir o mundo a partir de Hollywood. Tudo começou em 1996 com O Dia da Independência, onde a Terra era invadida por extraterrestres, continuou em 2004 com O Dia depois do Amanhã, sobre as alterações climáticas, e há dois anos culminou com 2012, tendo por pretexto a profecia Maia. “Os meus filmes não tratam do fim do mundo, o que me interessa é o contrário, é o recomeço. Mas para se encarar o recomeço é preciso mostrar o fim”, afirma.

Filmes, livros ou obras de arte em que a humanidade surge devastada por vírus, extraterrestres, cometas, guerras, desastres climatéricos ou profecias são comuns. Durante décadas, nas representações artísticas, o fim do mundo era provocado por uma ameaça exterior. É isso que acontece em A Guerra dos Mundos (1898), o livro de H.G. Wells, adaptado ao cinema por Steven Spielberg em 2005. Hoje a ameaça somos nós. Não há terramoto, inundação ou pandemia para o qual não aprontemos culpados ou significados humanos, como se a natureza nos castigasse pelos excessos, como é representado em Avatar (2009) de James Cameron.

Como expõe o físico e astrónomo Marcelo Gleiser (A tear at the edge of creation, 2010), “o medo do fim do mundo reflecte o nosso medo de perder o controlo da vida. Reflecte esse medo antigo, enterrado na memória colectiva e reconfirmado todos os anos em dezenas de desastres e nessa ideia de que a natureza é mais poderosa do que nós e tem o poder de nos aniquilar.”

Mas nem sempre a espécie humana é apenas vítima ou culpada. Em Melancolia (2011) de Lars Von Trier é um furioso desejo de desastre que precipita o fim, enquanto em Último Dia na Terra (2012) de Abel Ferrara um casal aguarda no apartamento o apocalipse e nessa espera angustiada vivem a possibilidade de redenção. O que vale é que o pós-apocalipse também está animado por estes dias, o que nos dá ideia de que, afinal, o fim pode não ser o fim. É isso que acontece, por exemplo, na série The Walking Dead, onde os zombies são a ameaça dos homens.

E que dizer de Perdidos, uma das séries de TV mais iconográficas da última década? Uma espécie de mitologia unificadora destes anos confusos, onde a estrutura narrativa reproduz estratégias de propagação viral no imaginário colectivo, com interpretações paranóicas assentes na procura de um sentido para um grupo de personagens que se encontram sem noção de espaço e tempo.

“Somos criaturas limitadas pelo tempo, com início e fim. O medo do fim vem da falta de controlo sobre a passagem do tempo”, reflecte Foessel. Perdidos é como nos encontramos, em grande medida, hoje. A música popular este ano não parou de o reflectir com uma série de álbuns lançados (Death Grips, GYBE!, Swans, William Basisnki, Crystal Castels, Holy Other), de origens estéticas muito diferentes, a reflectirem um mundo sem saída, apocalíptico.

Mas nas artes plásticas existe quem reaja conceptualmente contra esta profusão de Fins (o fim da história, o fim das ideologias, o fim da arte, o fim provocado pela crise financeira global) em que vivemos imersos desde os anos 1990, propondo que pensemos num mundo que não tem de estar necessariamente em correlação com a nossa existência. Um mundo sem nós, digamos assim, como no projecto Du mort, do artista Fabien Giraud.

Uma coisa é certa, depois do fim, ou seja, amanhã, vamos acordar, convencidos que as profecias do fim do mundo não fazem sentido. Mas não vale a pena sorrir. A vida continuará, mas as profecias não desaparecerão porque, como diz Kundera, se esse receio existe é porque ele está dentro de nós e aí se conservará

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