O deus Apolo, um pescador falido e mais um mistério por resolver na Faixa de Gaza

É rocambolesca a história que envolve a descoberta arqueológica que agora foi anunciada. Uma escultura “única” com milhares de anos pode fazer muito pela diplomacia do Hamas.

A escultura terá entre sete e três mil anos
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A escultura terá entre sete e três mil anos Reuters
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AFP PHOTO / HO / GAZA'S MINISTRY OF TOURISM AND ANTIQUITIES
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O pescador Joudat Ghrab AFP PHOTO/ SAID KHATIB

Um pescador diz ter resgatado do fundo do mar uma escultura em bronze do deus Apolo em Agosto do ano passado. Longe de compreender o seu real valor, levou-a para casa de carroça e, menos de 24 horas depois, viu-a ser confiscada por uns primos ligados às milícias do Hamas que, convencidos da sua importância, a puseram à venda no eBay por meio milhão de dólares (365 mil euros).

Graças à intervenção de um coleccionador consciencioso, a peça haveria de ir parar às mãos das autoridades civis deste grupo que controla parte dos territórios palestinianos, que a deixaram à guarda do seu Ministério do Interior. Agora, só o Hamas sabe onde está. Apetece perguntar: esta é uma descoberta arqueológica verdadeira ou mais um conto da Faixa de Gaza?

A agência de notícias Reuters, que faz o relato da descoberta e das peripécias que a rodearam com algum detalhe, garante que a escultura ainda não foi vista ao vivo por arqueólogos e historiadores, que até aqui têm tido acesso apenas a fotografias com má definição em que, curiosamente, a divindade greco-romana aparece pousada sobre um lençol colorido com pequenos Estrunfes.

“É muito, muito raro encontrar uma estátua que não em pedra ou em mármore”, disse ao canal televisivo da Reuters Michel de Tarragon, historiador associado da Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém. “É única. Eu diria até que, num certo sentido, sem preço. [Quererem saber quanto vale] é como se me perguntassem quanto custaria a Mona Lisa do Museu do Louvre.”

É também este especialista que lança as primeiras dúvidas em relação ao local em que a escultura terá sido resgatada, alertando para o facto de as marcas que exibe serem mais coincidentes com a possibilidade de ter estado sepultada em terra firme e não no fundo do mar. “Está muito limpa”, diz Tarragon, faltam-lhe evidências de corrosão do metal e não tem quaisquer crustáceos a cobrir-lhe a superfície ou parte dela, o que habitualmente acontece quando as peças passaram muito tempo debaixo de água salgada.

O que diz o pescador
É claro que a história que Joudat Ghrab (por vezes o nome aparece como Jouda Ghurab) conta, o pescador de 26 anos que levou Apolo para casa, é bem diferente e, ao mesmo tempo, bastante representativa do que é o dia-a-dia nos territórios ocupados. Antes de mergulhar para se aproximar da figura que vira do barco e que se encontrava a pouca profundidade, o jovem palestiniano, que ganha a pescar não mais do que 6,5 euros por dia, pensou tratar-se de um corpo carbonizado.

Ghrab, que tem dois filhos e enfrenta sérias dificuldades económicas, garante que a escultura em tamanho natural desta divindade foi retirada do mar, a 100 metros da costa, não muito longe da fronteira entre Gaza e o Egipto (o pescador conhece bem a zona, já que durante algum tempo escavou os túneis que unem os dois lados da fronteira e são usados pelos contrabandistas). Segundo se lê no artigo publicado na Business Week, revista de economia da Bloomberg, Ghrab e alguns familiares e amigos precisaram de cinco horas para a trazer à superfície. Pô-la na carroça que a levaria à aldeia de Deir al-Balah, nos arredores da Cidade de Gaza, também não foi tarefa fácil e, à chegada, este jovem que deixou a escola aos 13 anos e pesca desde os 17 teve ainda de enfrentar a indignação da mãe, com quem vive, que exigiu que os genitais do deus greco fossem rapidamente cobertos.

A estátua com 1,80 metros representa Apolo de pé, com um braço estendido com a palma da mão virada para cima e o outro ao longo do corpo. O rosto tem traços muito delicados – como convém a um Deus associado à beleza e à juventude –, os olhos seriam azuis (um tem ainda uma pedra dessa cor, a do outro terá caído) e o cabelo é encaracolado, cheio de detalhes.

“A minha situação financeira é muito má e estou agora à espera de uma recompensa”, diz o pescador, citado pela Reuters, assumindo ter cortado um dos dedos da escultura para o levar a um joalheiro que identificasse o material de que era feita (Ghrab estava na esperança de que fosse de ouro).

Já em casa, contou, e depois de os familiares com ligações às milícias do Hamas se terem apoderado dela, a escultura apareceu à venda no eBay – ainda não é claro se houve, ou não, quem demonstrasse interesse em comprá-la. O que se sabe é que, mal as autoridades civis do Hamas se aperceberam da existência da peça, mandaram a sua polícia confiscá-la. Segundo uma fonte do Ministério do Turismo de Gaza, também ouvida pela agência noticiosa, a escultura não será exposta sem que se apure o responsável (ou responsáveis) pela tentativa de venda online.

O coleccionador conscencioso
Manter a peça fora do mercado negro foi só um primeiro passo, explicou à revista da Bloomberg Jawdat Khoudary, um coleccionador de antiguidades que fez fortuna nos ramos da construção e da hotelaria, e que se tem dedicado ao inventário do património de Gaza, com a ajuda de vários académicos de universidades europeias e do Médio Oriente.

Foi precisamente Khoudary, de 53 anos, quem alertou as autoridades civis do Hamas quando, em Setembro do ano passado, um intermediário que actuava em nome dos primos do jovem pescador o contactou para saber se estaria interessado em comprar a escultura, mostrando-lhe um vídeo breve feito com um telemóvel. “Fiquei chocado”, disse o coleccionador à Business Week, “nunca tinha visto uma estátua tão grande como esta em Gaza, belíssima e completa.”

Khoudary sabia que não podia comprá-la – uma peça tão rara, reconheceu de imediato, devia estar à disposição de um público vasto e decidiu agir. Para além de avisar as autoridades, envolveu-se no restauro que se adivinhava urgente, pondo a funcionar a sua rede de contactos. Um deles, Thomas Bauzou, da Universidade de Orléans, em França, foi um dos que ficaram fascinados e é dele a datação provável (entre os século V e II a.C.). “O Apolo de Gaza é excepcional, porque é a única escultura grega de bronze e em tamanho real encontrada em todo o Médio Oriente”, escreveu Bauzou num relatório de Outubro de 2013, agora citado.

Mas Bazou, assim como Tarragon e Jean-Baptiste Humbert, dominicano e arqueólogo que também trabalha na Escola Bíblica Francesa de Jerusalém, um dos especialistas que Khoudary quis ouvir, não acredita que o pescador tenha resgatado a estátua ao mar: “Toda esta história foi fabricada de forma a esconder o verdadeiro sítio onde foi encontrada para que, assim, as escavações [ilegais] ali possam continuar.”

Se ficar provado que Joudat Ghrab não esteve envolvido nesta tentativa de exportação ilegal do Apolo, nem tentou falsear o local em que a descoberta foi feita, o pescador deverá receber uma recompensa, explicou o director do património arqueológico deste enclave com 1,8 milhões de habitantes, Ahmed al-Bursh. Mas antes, nota, é preciso deixar correr a investigação criminal.

Apurar sem sombra de dúvidas onde foi resgatada é particularmente importante por dois motivos, lembra ainda o historiador da Escola Arqueológica Francesa de Jerusalém: em primeiro lugar, porque a localização é crucial para determinar a que autoridade pertence; em segundo, porque é altamente improvável que uma escultura desta natureza, encontrando-se ainda no lugar para onde foi criada, fosse peça isolada. Para Tarragon, a escultura pode ser apenas a ponta do icebergue de uma monumental descoberta arqueológica.

Um território com mais de cinco mil anos de história, por onde passaram egípcios, romanos ou cruzados, visitado por Alexandre, o Grande, e pelo imperador Adriano, esconde certamente sob a areia camadas e camadas de testemunhos das suas diferentes ocupações. Vestígios que, em virtude da violência e da calamidade social em que vivem há décadas os territórios ocupados, se encontram na sua esmagadora maioria por descobrir. Nunca houve escavações sistemáticas com o adequado enquadramento científico.

“Naquela época, uma escultura era integrada num complexo – um templo ou um palácio”, acrescenta Tarragon, dizendo que é provável que se venham a descobrir muitos outros artefactos no mesmo local, o que torna todo este episódio rocambolesco muito “sensível”.  

Moeda diplomática
O Apolo de Gaza, sublinha a Business Week, poderia vir a ser muito disputado no mercado ilegal de antiguidades. “Um bronze deste tamanho é uma peça única”, disse à revista Giacomo Medici, um negociante de arte italiano que vive hoje em prisão domiciliária devido ao seu envolvimento no tráfico de arte internacional. Se pudesse ser vendida, a escultura atingiria os “20, 30, 40 milhões de euros, talvez mais… 100, se estiver nas melhores condições”, assegura Medici, cujo processo em tribunal obrigou importantes museus como o Getty de Los Angeles e o Metropolitan de Nova Iorque a devolverem peças das suas colecções.

Para o director do património de Gaza, trata-se de um “tesouro precioso" que será mostrado em Gaza, quando o seu processo de restauro, que deverá começar assim que as autoridades libertarem a peça, estiver concluído. Diz Ahmed al-Bursh que já recebeu ofertas de ajuda de instituições internacionais, que querem participar nos trabalhos de conservação, e que um museu na Suíça, outro nos Estados Unidos e o próprio Louvre já pediram para a expor. Os museus francês e americano também se propuseram conduzir os trabalhos de conservação.

“Mantemos a porta aberta à cooperação com qualquer governo”, disse, por seu lado, Muhammad Ismael Khillah, assessor do Ministério do Turismo, citado pelo Huffington Post, o site  de notícias norte-americano, esclarecendo que a sua exposição ao público está a ser considerada, contando que tapem a zona genital do Apolo milenar para que o “código de decência” do Hamas não seja violado (a exibição de um corpo nu seria vista como um atentado ao pudor). “Mas, para já, a nossa investigação ainda está a decorrer”, acrescentou à Business Week.

A abertura demonstrada por Khillah está longe de ser inocente. Qualquer protocolo de cooperação com instituições na Europa e nos Estados Unidos, assim como eventuais oportunidades de aí expor a escultura poderiam ser usados politicamente pelo Hamas, que procura reconhecimento internacional.

Tratar este Apolo como “património nacional” de relevância mundial reconhecida pode ser mais um passo para a afirmação da Palestina, que em Novembro de 2012 se tornou membro observador das Nações Unidas, numa votação que contou com uma abstenção histórica da Alemanha e representou uma pesada derrota para Israel e os EUA.

 

 

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