Morreu Raúl Ruiz, o realizador "incomparável"

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Raúl Ruiz estava radicado em França desde o golpe de Pinochet, em 1973 Foto: Vincent West/Reuters

O realizador deixa “uma das maiores e mais intensivas obras da história do cinema”, considera Paulo Branco, que produziu 15 filmes do chileno. Em declarações ao PÚBLICO, o produtor português não poupa elogios a Raúl Ruiz, “enorme artista, absolutamente único”. “Não há ninguém que se possa comparar”.

“Tive a sorte de trabalhar com ele ao longo de 35 anos, de ser seu amigo”, acrescenta. Paulo Branco diz que estava a trabalhar em “vários projectos” com Ruiz e que a morte do realizador foi “completamente inesperada”, a meio da rodagem de As Linhas de Torres Vedras. Mas o filme será acabado, assegura Paulo Branco.
Raúl Ruiz cultivava uma “ligação muito grande” a Portugal e este novo filme era um regresso ao século XIX português, depois de
Mistérios de Lisboa. Entre os dois filmes, avançam as invasões francesas para primeiro plano. Adriano Luz, Albano Jerónimo e Léa Seydoux são alguns dos actores que transitam entre as duas histórias, aos quais se juntam John Malkovich e Mathieu Amalric.
Mistérios de Lisboa
é uma obra de época e de fôlego: a adaptação do romance homónimo de Camilo Castelo Branco tem quase quatro horas e meia, na versão para cinema, e seis na montagem em seis episódios para televisão. Mas é, ainda assim, um sucesso internacional, com estreias em sala e em festivais de mais de uma dezena de países, vários prémios (incluindo o francês Louis Delluc) e aplauso da crítica.

Obra-prima é uma qualificação recorrente do filme. Aliás, é muito fácil encontrar pela rede referências ao “génio” do chileno. O que é difícil é encontrar uma ponta por onde começar a desenrolar as obras dignas de nota do realizador, radicado em França desde 1973, após o golpe de Estado de Augusto Pinochet no Chile.

Quando chegou à Europa, Ruiz começou a trabalhar para televisão e continuou a ser tão ou mais profícuo quanto era em casa. Fez de tudo: ficção e documentário, cinema e vídeo, curtas e longas. A primeira destas foi Tres tristes tigres (1968), já depois de ter experimentado a dramaturgia durante a segunda metade da década de 1950 (escreveu mais de uma centena de peças para teatro de vanguarda).

Tres tristes tigres

, Leopardo de Ouro (Locarno), é um bom ponto de partida. Podemos então dar um salto considerável – com prejuízos vários – para chegar a

Les trois couronnes du matelot

(1983). Este filme valeu ao chileno o prémio Perspectivas do Cinema, em Cannes, e abriu-lhe as portas para um número especial dos

Cahiers du Cinema

. A

biopic

do pintor austríaco Klimt, estreada em 2006, permite-nos construir um terceiro pilar de segurança para depois mergulhar em espiral pela filmografia do realizador.

Outra forma de ir entrando pela extensa obra do chileno é pela literatura que adaptou ao cinema: Jean Giono (Les Ames Fortes), P. Calderon de la Barca (La Vie est un Songe), Robert Louis Stevenson (l’Îlle au Trésor), Racine (Berenice), Pieree Klossowski (La Vocation Suspendue e L’Hypothese du Tableau Volé), Franz Kafka (La Colónia Penal), Camilo (Mistérios de Lisboa). Há ainda o emblemático Le Temps Retrouvé, a partir de Marcel Proust.

A diversidade é evidente: setecentistas, modernistas, vitorianos, românticos e surrealistas. Raúl Ruiz usou todas essas influências na tradução cinematográfica que fez do realismo mágico (a ligação à sua América Latina nunca se perdeu), para construir uma linguagem tão profusa quanto ele próprio. A morte, aos 70 anos, surgiu de forma inesperada, depois de ter ultrapassado um cancro no fígado diagnosticado durante a rodagem de Mistérios de Lisboa.

Notícia actualizada às 17h01
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