Madrid fica no rochoso faroeste americano

Com Brokeback Mountain, adaptação do conto de Annie Proulx que já dera origem ao filme de Ang Lee sobre a história de amor entre dois cowboys do Wyoming, o ex-director do Teatro Real de Madrid, Gerard Mortier, concretiza a sua ideia de que se a ópera é entretenimento para público liberal, serve para discutir os grandes temas da sociedade. A aposta era arriscada, a expectativa elevada - e a discussão vai continuar.

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Brokeback Mountain

Na noite de terça-feira era mais do que a capital espanhola. E o Teatro Real mais do que um teatro de ópera. A estreia mundial de Brokeback Mountain, que adapta o conto de Annie Proulx, era a mais aguardada da temporada e um dos projectos que há mais tempo o ex-director do Teatro Real, Gerard Mortier, acalentava. Na plateia a fina-flor das direcções artísticas dos teatros de ópera do mundo, de Los Angeles a Amesterdão, de Londres a Nova Iorque esperava para saber como era possível responder à expectativa que há meses vinha sendo criada pela adaptação à ópera do conto que serviu de base, em 2005, ao filme de Ang Lee sobre dois guardadores de rebanhos que se apaixonam nas áridas montanhas do homofóbico Wyoming americano.

Entretenimento e grandes temas
Ivo van Hove, o encenador, juntou os silêncios inquisitivos de Lágrimas e Suspiros (Bergman) aos desencontros afectivos de Noite de Estreia e Husbands (Cassavetes), prolongou o olhar sobre o homem em perda – de poder (Ludwig, de Visconti), de identidade (Teorema, de Pasolini), de afirmação da masculinidade (Rocco e os seus irmãos, novamente Visconti) – e, tal como fizera com Anjos na América (Tony Kushner), esventrou a América profunda pelo seu lado mais racional, desapossando-a do sonho americano, onde o individual sucumbe ao colectivo.

Brokeback Mountain, a ópera, pode ter sido recebida com aplausos moderados mas, ao longo de duas horas, os corpos, e as vozes, de Ennis del Mar e Jack Twist, eram, mas mãos de Ivo Hove, nas palavras de Annie Proulx e na partitura de Charles Wourinen, uma reflexão sobre a negação da condição humana. O desenho diagonal dos movimentos dos cantores entrava em diálogo com a aspereza ferida das palavras e, por vezes, parecia proteger-se da partitura, ela própria avançando e recuando como que provando que repressão e cumplicidade são ideias e sentimentos gémeos ou complementares.

O compositor diria, no encontro com a imprensa, que pretendeu “reflectir sobre algo que é universal de um modo que pudesse falar a um público contemporâneo” – intenção ao encontro da de Mortier, que, em 2009, o convidou após ter lido no New York Times um artigo onde Wuorinen mostrava o desejo de adaptar Proulx. Na altura, Mortier era ainda director do New York City Opera e, especulava o Financial Times esta semana, era impossível não imaginar que “quisesse, pelo menos de alguma forma, chocar o público com uma obra dodecafónica”. Este é, lembra o jornal, o homem que “liderou o gosto europeu ao longo da década em que esteve à frente do Festival de Salzburgo, provocando o público até à raiva e ao confronto, que definiu o perfil da agreste Trienal de Ruhr, que fez estalar o verniz em Paris e irritou Nova Iorque, construindo públicos por onde quer que passasse”.
 
Mas, tantos anos passados, a intenção de Mortier era outra. No encontro com a imprensa espanhola, contava o El País, Mortier tinha sido mais contundente do que com a imprensa internacional ao fim da tarde, encontro em que o PÚBLICO esteve presente: “Quando apresentámos esta ópera ao conselho de direcção, houve uma pessoa que me perguntou: ‘Mortier, de que público está à procura com esta produção? Disse-lhe: ‘Um público liberal que possa discutir grandes temas. Sabemos que muitos homossexuais são ainda descriminados”. Não escondera, de manhã, que “esta era uma escolha política, no melhor sentido da palavra” e, à tarde, explicou melhor em que constitui a sua ideia de ópera: “A ópera é entretenimento, mas isso não nos deve impedir de discutir os grandes temas da sociedade”. Na manhã seguinte o El Mundo trazia na primeira página “o êxito dos vaqueiros gays de Mortier” e, lá dentro, explicitava que “o impacto mundial [provocado pela ópera] não se explica sem a despedida de Gerard Mortier”, mesmo que fosse claro que não se podia dizer “ser uma montagem arriscada nem com cenas polémicas”. Na sala, as reacções às cenas íntimas entre Ennis del Mar (Daniel Okulitch) e Jack Twist (Tom Randle) foram recebidas com relativa indiferença por uma plateia que combinava os visons de quem podia pagar 363€ e as calças de ganga dos bilhetes de última hora a 36€.
 
O compositor Charles Wuorinen, segundo Mortier “um profundo americano de traços europeus”, explicara momentos antes da estreia que Brokeback Mountain não pretendia ser “uma obra ideológica mesmo que o seu contexto de produção contemporâneo nos leve a reconhecer um assunto que muito nos diz e que não é ainda universalmente aceite”.
 
Esperava-se mais
E, por isso, esta ópera sobre a sociedade americana – tanto quanto The Perfect American, de Philipp Glass, estreada há um ano e uma biografia amarga sobre Walt Disney – é uma ópera sobre a sociedade actual. O que explica a expectativa que rodeou a estreia, a abstracção da encenação, a educação dos aplausos e a ambiguidade da recepção crítica. Brokeback Mountain pode ser sobre a América profunda e homofóbica que Annie Proulx relatou na década de 80 em frases curtas, mas as decisões ambíguas e os lancinantes mal-entendidos entre Ennis e Jack, bem como os espelhos sociais que surgem contrastados nas famílias de um e de outro, são o microcosmos que disseca a realidade que existe à volta do palco do Teatro Real.

Oito anos depois da intenção de Mortier, e quando em economias emergentes como a Rússia e a Índia ou em vários regimes africanos a repressão dos homossexuais é ainda uma realidade por erradicar, ou nos tribunais americanos se fazem e desfazem leis sobre direitos e garantias, é difícil não projectar expectativas numa nova leitura daquela que se constituiu – por força do filme de Ang Lee e para surpresa de muitos - na maior referência junto de um público transversal. O compositor defendeu-se dessa expectativa afirmando estar a fazer “aquilo que foi sempre feito no palco e na escrita”, ou seja, dar forma artística e espaço público a histórias universais.

Esperava-se sobretudo mais quando, na história da ópera, a homossexualidade é um tema pouco comum. Escreveu o Welt: “A ópera já deu forma a deuses e monstros, patifes e santos, cortesãs e castrados. É também uma arte de e para homossexuais. Mas homens que se amam tínhamos, até agora, visto e ouvido muito pouco. A ambivalência sexual é escondida em papéis de calças e mascarada em intrigas mais formais”. Antes de Alban Berg ter adaptado os dois livros de Frank Wedekind Espírito da Terra e A Caixa de Pandora e criado Lulu, em 1935, nunca uma personagem tinha sido definida pela sua sexualidade como a Condessa Martha Geschwitz, apesar, por exemplo, de já em Rossini, com Semiramide (1823), e, mais tarde, em Strauss, com Der Rosenkavalier (1911), ser explorado o amor entre duas mulheres. Na história da música o nome de Benjamin Britten é referente máximo e Charles Wuorinen citou-o a propósito dos antecedentes da ópera com personagens gays. Peter Grimes (1945), Billy Budd (1951) mas, sobretudo, a sua adaptação de Morte em Veneza (1973) são um marco fundamental numa genealogia escassa, à qual se devem juntar a produção que a English National Opera apresentou em 2005 de As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, a partir da peça, e depois filme, de Fassbinder, e a encomenda, em 2011, de Two Boys, de Nico Muhly, sobre os acontecimentos que levaram à morte de um adolescente. Em Madrid, contudo, Brokeback Mountain é uma estreia já que, lembrava o El País, El secreto Enamorado, de Manuel Balboa a partir de um texto de Ana Rossetti sobre Oscar Wilde, e apresentado em 1992, fora ignorada.

Brokeback Mountain pode não ser visto por Mortier, Proulx e Wuorinen como uma obra que hasteia uma bandeira. Isso não significa que da sua criação não se esperasse a constituição da “referência operática para a comunidade gay”, como escreveu a revista gay Out. “Aplaudimos o conceito mas não o resultado, apreciamos o marco que é a transformação em ópera de uma icónica história de amor entre dois homens, mesmo que não se tenha traduzido numa experiência artística satisfatória”. Esperava-se mais, nove anos passados sobre o filme. “Esta versão operática podia finalmente abrir as comportas emocionais mas apresenta-se surpreendentemente contida.” É o jornal alemão Welt quem sublinha o que se comentava após a estreia: “Num contexto como este, o que poderia ter uma importância capital, permanece um exercício de dever”.
 
A musicalidade da palavra
Foi Mortier quem, fazendo a defesa das suas escolhas, chamou a atenção para o risco de comparação entre filme e ópera. “São objectos muito diferentes” e não foi por acaso que a programou num diálogo com Tristão e Isolda, de Wagner (que Peter Sellars encena com cenários em vídeo de Bill Viola). “A diferença é que em Wagner tudo é muito explícito e Annie Proulx escreve frases curtas”, explicou, procurando justificar o modo como a estreia da contista americana abria novas perspectivas para a sua história. “Tornei-me mais consciente da musicalidade da minha própria escrita”, disse a autora ao PÚBLICO, falando de um trabalho de “abertura da dimensão poética da própria palavra”. “No Wyoming todas as frases são curtas, há muitas palavras que são difíceis e o trabalho consistiu em perceber como podiam ser cantadas, mesmo sendo curtas, difíceis ou indizíveis”.
 
O que a autora percebeu, nesta nova leitura do conto, foi a musicalidade da sua palavra. “Nos contos tudo pode acontecer, é um modo muito condensado de contar uma história que deixa mais por intuir do que aquilo que afirma”. A distância da autora relativamente ao filme começa aí. “Há coisas que não precisamos de saber porque há coisas que não sabemos o que são”. No seu libreto as palavras deixam os cantores em suspensão e Ivo van Hove, usando isso a seu favor, constrói todo o seu olhar no conflito visual entre a exacerbação dos sentimentos e a desolação do cenário, entre a consciência emocional do corpo e a consciência racional das palavras. Para o compositor esta abordagem à eminente tragédia é a força que estruturou o seu trabalho, respondendo à inarticulação inicial de Ennis del Mar (“à sua manifesta homofobia e conservadorismo”, descreve Proulx) e à consciência clara de Jack Twist sobre o que procura.
 
Para quem tiver lido o conto e visto o filme, a surpresa da adaptação surge não apenas na criação de mais espaço dramatúrgico para o percurso de Alma, mulher de Ennis, mas também pelo modo como Proulx se aproveita das “tradições da ópera” e introduz um fantasma na narrativa (o sogro de Jack Twist que levanta suspeitas sobre as verdadeiras razões da morte, acidente ou homofobia: “não precisamos saber”) e um coro que age como corpo moralizante e vigilante.
 
Mas, escreveria o Financial Times, “um autor superlativo não é automaticamente um libretista consumado” e “as palavras que eram apenas intuídas no conto original [eram] demasiadas palavras; menos teria sido melhor”. Opinião que contrasta com a dos espanhóis. No El País, mesmo se “o libreto é transparente e às vezes demasiado previsível” é precisamente porque “o tratamento teatral e lírico é mais racional, mais controlado, mais narrativo ao pé da letra”. E isso deve-se ao facto de a história apresentar “personagens normais, das que se podem encontrar nas ruas”, tal como, sublinha o crítico, Verdi fizera com La Traviata. “E sabemos o que disse a História sobre a recepção da La Traviata”, brincou Mortier fazendo alusão às reacções negativas do público do La Fenice em 1853. “Já estive nervoso demasiadas vezes para me importar com o que se possa passar”, disse o ex-director, ironizando com a sua doença (foi-lhe diagnosticado um cancro que o levou a abandonar o cargo): “Tornei-me um existencialista e preocupo-me menos”. Por isso, menos preocupado com o impacto local que a ópera pudesse ter e mais interessado no papel que um teatro de ópera deve ter, sobretudo numa “cidade aberta e liberal mas com elites dominantes conservadoras”.
 
As reservas mais explicitadas pela imprensa vão para a partitura abrupta de Charles Wuorinen que toma conta do palco num diálogo contrastante com as projecções “das verdadeiras paisagens do Wyoming, onde se pode morrer” (assim descreveu Mortier) que o encenador Ivo van Hove usa em fundo – num palco onde os adereços foram inspirados na cenas do quotidiano pintado por Edward Hopper. Este contraste entre diferentes harmonias – a do texto na sua intencionada releitura dos silêncios surdos criado pelas diferentes posições dos amantes; a da música na sua partitura “atonal, complexa, desprovida de emoções” (El Mundo); a da encenação, apostando num “sentido teatral preciso e rítmico” (El País) – explicará a dificuldade em avaliar se a resposta crítica é equivalente à expectativa mediática.
 
Wuorinen havia explicado que o seu método de trabalho se podia definir como “uma prosódia natural” ou seja, um exercício que se deixa conduzir pelas palavras. “Ainda que o faça admiravelmente”, escreveu o New York Times, “esta é uma ópera que dificilmente se ama”. No jornal, Anthony Tommasini escreveu que as qualidades do trabalho de Wuorinen, como “a engenhosa complexidade, as lúcidas texturas e a atonalidade ácida da sua escrita harmónica”, são aqui os pontos fracos porque “anulam o drama”. Escreveu o Guardian que a partitura “seca e estiolada” de Wuorinen lembrava “por vezes um Schoenberg tardio e, noutras, um Stravinsky de série que raramente transcende o texto de modo a explorar o drama, optando por pontuações lacónicas que o sublinham”. Para o jornal inglês isso é perceptível desde “a tenebrosa abertura” que, mesmo antecipando a tragédia, “quando é chegado o momento trágico, com a morte de Jack, duas horas depois, nada mais há para mostrar a violência que se esperava; o monólogo final de Ennis é apenas indicativo do potencial que a música poderia ter explorado”.
 
Ennis del Mar caminha de uma inarticulação das palavras, por não saber expressar ou compreender os seus sentimentos, até uma explosão emocional que é tardia, pois apenas surge após a morte de Jack. A tensão sugerida ao longo da ópera é alimentada pelo conhecimento prévio do espectador sobre o desfecho e a admissão de erro por Ennis, que ali promete nunca mais amar ou deixar-se amar. Gerard Mortier falava de Brokeback Mountain como exemplo de reflexão da “nossa relação com a vida através da arte”. Talvez seja possível admitir que, quando a camisa ensanguentada de Jack é içada e desaparece nas brumas que envolvem o palco, Ennis se dê conta de que passaram vinte anos desde a luta entre os dois, na manhã após a noite que passaram juntos. No momento em que se despede de Jack, o palco abandona o branco clínico pelo negro soturno e é possível ler nas intenções de Ivo Van Hove, Annie Proulx e Charles Wuorinen um questionamento sobre as nossas próprias escolhas. Mortier defendeu Brokeback Mountain como uma inscrição nas verdadeiras emoções operáticas: “Podia ser uma ópera de Puccini, mas é muito perigoso admiti-lo. Não é de sentimento [que se fala], é tragédia”.

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