História e mito: resposta a António Guerreiro

Em geral, internamente, essa esquerda faz gala em afirmar-se “antinacionalista”. Mas apenas dentro de fronteiras.

“A direita me considera como da esquerda; esta como sendo eu inclinado à direita; o centro me tem por inexistente. Devo estar certo.” (Agostinho da Silva)

Em duas semanas consecutivas, António Guerreiro (A.G.) brindou-nos com dois artigos contra o que chama “cultura de direita” (PÚBLICO-Ípsilon, 28/2 e 7/3). Nestes dois, visa, entre outras figuras, o poeta Manuel Alegre, “que é de esquerda, [mas] tem uma concepção da poesia e da figura do poeta nitidamente de direita”. É, pelos vistos, uma obsessão de A.G. – já num artigo menos recente sobre a revista Nova Águia, de que sou fundador, escreveu: "A chamada 'filosofia portuguesa' conheceu nos últimos anos alguns ressurgimentos editoriais, um dos quais é a revista Nova Águia, herdeira da Águia, que foi o órgão do movimento da Renascença Portuguesa. Apesar da sua aparente apolitia, a Nova Águia (cujo primeiro número era sobre 'A Ideia de Pátria' e o mais recente tem por tema o célebre dito de Bernardo Soares: 'Minha pátria é a língua portuguesa') pode ser identificada com uma cultura de Direita. É típico da Esquerda não saber o que é a cultura da Direita, até para evitar o embaraço de verificar o quanto está impregnada dela (por exemplo, a poesia portuguesa mais próxima da cultura de Direita é a de Manuel Alegre)." (Expresso-Actual, 30/4/2011).

Face aos argumentos e exemplos aduzidos, não podemos deixar de expressar a nossa perplexidade. Se A.G. pretende apresentar, entre nós, um exemplo de um “poeta como vate comparável ao Dichter de Stefan George” não se percebe por que dá o exemplo de Manuel Alegre, havendo tantos exemplos maiores que poderia dar: a começar por Teixeira de Pascoaes, fundador da revista A Águia, em que a Nova Águia se inspira. E daí talvez se perceba: se A.G. desse o exemplo de Pascoaes, não se poderia continuar a circunscrever ao sectarismo ideológico esquerda-direita que tanto o obceca, pela simples mas suficiente razão de que Pascoaes está muito para além desse sectarismo. Ele, simplesmente, faz implodir essas grelhas, sendo, assim, tão redutor qualificá-lo como um poeta de “esquerda” ou de “direita”. A menos, claro está, que se considere que basta alguém falar de “Pátria” para poder ser qualificado como representante da “cultura de direita” – tese que não resiste a um mínimo de cultura histórica.

A.G., reconheça-se, é um pouco mais sofisticado – a seu ver, o grande sintoma da “cultura de direita” é “pretender sempre transformar a história em mito”. Essa tese, porém, também não resiste muito. Diria até, em antítese, que é próprio de todas as narrativas históricas (não só retrospectivas como prospectivas) uma certa dose de “mitificação”. Isso não é, porém, exclusivo das visões de direita. Apenas um exemplo: a “Revolução de Outubro de 1917”, sendo um dado histórico, não deixa de ser ainda hoje uma construção mítica – e, para o sustentar, nem é preciso recorrer aos filmes de Eisenstein. E o que dizer da figura mitificada, ainda hoje, de Lenine enquanto “líder político”? Contra todas as evidências históricas, continua-se a personalizar o lado “mau” do regime soviético na figura “contramítica” de Staline, de modo a manter a figura de Lenine miticamente imaculada… Poderíamos aqui multiplicar os exemplos, no plano externo e interno, mas julgamos que este é suficiente para questionar a tese de A.G., muito típica de uma certa esquerda que não prima propriamente pela coerência. Apenas mais um exemplo: em geral, internamente, essa esquerda faz gala em afirmar-se “antinacionalista”. Mas apenas, claro está, dentro de fronteiras. Fora delas, não sobram dedos para contar todos os nacionalismos que apoiaram e apoiam…

Director da revista Nova Águia, presidente do MIL: Movimento Internacional Lusófono

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