Prémio Jellicoe para as "utopias" de Gonçalo Ribeiro Telles

Ribeiro Telles foi esta quarta-feira distinguido com o mais importante prémio da disciplina, atribuído em Auckland. O prémio distingue profissionais com "um impacto incomparável" na profissão.

Gonçalo Ribeiro Telles é responsável pelo projecto dos jardins da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa
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Gonçalo Ribeiro Telles é responsável pelo projecto dos jardins da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa Rui Gaudêncio
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Ribeiro Telles desenhou o parque da Gulbenkian Pedro Valdez
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Os jardins receberam o Prémio Valmor em 1975 Gonçalo Santos
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O arquitecto nos jardins da Gulbankian Pedro Valdez
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A intervenção na capela de São Jerónimo é outro dos projectos de Ribeiro Telles, de 1955 Daniel Rocha
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O Jardim Amália Rodrigues conta com um anfiteatro Gonçalo Santos

O prémio, segundo a Associação Portuguesa dos Arquitectos Paisagistas (APAP), "representa a maior honra que a Federação Internacional dos Arquitectos Paisagistas (IFLA) pode conceder e reconhece um arquitecto paisagista, cuja obra e contribuições ao longo da vida tenham tido um impacto incomparável e duradoiro no bem-estar da sociedade e do ambiente e na promoção da profissão de Arquitectura Paisagista".

Gonçalo Ribeiro Telles estava, “evidentemente”, muito satisfeito como prémio e disse ao PÚBLICO que espera que chame a atenção para muitos dos problemas que o levaram a receber o prémio: "Problemas que têm preenchido a minha vida e que eram entendidos como utopias.” Depois, ri-se, e diz que o prémio é uma “couraça”, uma defesa que lhe vai permitir continuar a dizer o mesmo, agora com reconhecimento internacional.

Da sua vida profissional, o arquitecto paisagista destaca o estabelecimento em 1983 das reservas agrícola e ecológica nacionais, “figuras de planeamento que deviam estar incluídas com mais sapiência no ordenamento do território” e “a defesa de uma agricultura em função do território e da instalação das pessoas”.

Ribeiro Telles diz que temos “uma paisagem policultural de grande valor e expressão”, mediterrânica, que sofreu “anos e anos de uniformização como se não houvesse uma história”. “Houve uma ocupação do território abusiva e uma degradação do solo para benefício da especulação urbana e das culturas extensivas”. Ribeiro Telles denunciou, e continua a denunciar com a mesma energia, “a eucaliptização do país” e quando falamos de floresta ou de política para a floresta, uma palavra que não é nossa, prefere falar de “mata”, de “silvicultura”, “agricultura”, “regadio”, “montado”, “souto”. “Tudo isso é apagado por uma visão economicista”.

"Ribeiro Telles é um clássico"
"É um momento muito importante para Portugal. O grande reconhecimento que é devido a este homem, único, vem de fora, dos seus pares internacionais", diz a arquitecta paisagista Aurora Carapinha ao PÚBLICO, que organizou a homenagem a Ribeiro Telles que teve lugar na Fundação Gulbenkian em 2011. "É um homem único não só pela forma como exerceu a profissão, mas também pela sua dimensão humanista, pela partilha do conhecimento."

Aurora Carapinha explica que Ribeiro Telles "é o grande mentor ideológico de toda uma política de paisagem", que se desenvolveu em Portugal mesmo antes de outros países e que ela recua até aos anos 1960. Essa forma singular de olhar a paisagem procura "uma relação íntima entre a cultura e a natureza". Carapinha sublinha também "a introdução da ecologia, não de uma maneira fundamentalista, mas como um dos primeiros elementos base do trabalho". Conceitos como "biodiversidade", "multifuncionalidade", "equilíbrio", "dinâmica" e "a noção de recurso finito" começaram a ser desenvolvidos muito cedo por Ribeiro Telles na sua prática profissional.

O filósofo e ambientalista Viriato Soromenho Marques lembra-se de ver Gonçalo Ribeiro Telles na televisão em 1967, a falar sobre as cheias em Loures que mataram 500 pessoas. O impacto das palavras do arquitecto paisagista foi grande, porque Ribeiro Telles foi directo: na origem daquelas mortes estava a construção em cima de um leito de cheias. “Era pouco habitual ouvir alguém fazer críticas na televisão naquela altura.” Hoje, sabendo da distinção atribuída pela IFLA, não hesita em dizer que “o que é duradouro não é o moderno, é o clássico - e Ribeiro Telles é um clássico”.

E um clássico de Gonçalo Ribeiro Telles é o seu discurso de defesa do território, seja na sua acção política seja na sua prática arquitectónica. Há, por um lado, o Jardim da Fundação Gulbenkian, “um capital activo” de que tanta gente diariamente usufrui, comenta Soromenho Marques, professor catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Mas há também a história, a história política e social que lhe dá hoje razão. Ribeiro Telles “continua a trabalhar com muita intensidade cívica a situação dramática que o país está a viver, sendo que o grande legado e a grande mensagem histórica de Ribeiro Telles para Portugal é de que a soberania de um país depende da sua capacidade de tratar o território com cuidado suficiente para que o possa suportar”.

Soromenho Marques tanto refere obras arquitectónicas de Ribeiro Telles quanto posições políticas do agora premiado quanto, por exemplo, à transformação das florestas em espaços de monocultura para fins industriais, ou na sua defesa do uso da tecnologia para manter as pessoas junto à terra.

No fundo, diz o professor, antes e depois de ter ocupado cargos políticos, Ribeiro Telles “defendeu sempre que o destino de Portugal em busca de um novo enquadramento estratégico na Europa dependia da nossa ligação ao território”. E hoje “estamos presos pelo estômago. Imagine-se a nossa capacidade negocial com a Alemanha se tivéssemos a capacidade de sustentar o país. O problema central [da crise actual] é a insustentabilidade de recursos”, remata Viriato Soromenho Marques.

A entrega do prémio aconteceu esta quarta-feira durante uma sessão do congresso, ao arquitecto paisagista Miguel Braula Reis, presidente da APAP, que o recebeu em representação de Gonçalo Ribeiro Telles, de 90 anos. Braula Reis leu um texto escrito pelo premiado, ao mesmo tempo que foi exibido um vídeo, gravado nos Jardins da Gulbenkian, com uma mensagem de agradecimento de Ribeiro Telles.

 Nesse texto de aceitação do prémio, Ribeiro Telles recua à sua memória das viagens anuais de Lisboa a Coruche, todos os natais, como uma experiência que “omnipresente” na sua carreira porque “ficava sempre espantado quando encontrava um mundo diferente daquela avenida axial e movimentada no centro da cidade”, a Avenida da Liberdade, onde estudava e brincava. O “apelo da quase ruralidade”, “o mistério do montado” fazem parte da paisagem a partir da qual aprendeu, escreve.

No mesmo texto, o arquitecto volta aos temas que lhe são próximos: a ligação da tecnologia e urbanismo, a ideia de “paisagem global” que cunhou em 1990,  à “modernidade como junção tanto de rural quanto de urbano”. E presta tributo a Francisco Caldeira Cabral, o pioneiro da arquitectura paisagística em Portugal, para falar da missão destes profissionais na humanização da natureza e como, no fundo, “um fabricante de paisagem”.

"O espaço carregado de memórias"
Para o arquitecto paisagista João Gomes da Silva, este é um reconhecimento muito importante por se tratar de um prémio “que distingue a carreira [de Ribeiro Telles] num contexto mundial. Ribeiro Telles é uma figura única, é merecedor deste prémio”, diz ao PÚBLICO o arquitecto, responsável pela requalificação da Ribeira das Naus, em Lisboa, acrescentando que Ribeiro Telles representa o “desenvolvimento que as sociedades europeias escolheram no pós-guerra”. João Gomes da Silva destaca ainda que foi Ribeiro Telles quem “estabeleceu a disciplina da arquitectura paisagista em Portugal”. “Além disso tem uma dimensão política notável”, sublinha o arquitecto.

“Preocupou-se sempre com as questões do ordenamento do território e soube mostrar aos cidadãos como é importante olhar para o espaço onde habitamos”, continua João Gomes da Silva, contando que mantém uma relação especial com Ribeiro Telles, com quem já trabalhou. “Há qualquer coisa dele que passou para mim”, diz, falando de uma capacidade de procurar entender o espaço que habitamos, “o espaço carregado de memórias”. “Ele tem de facto uma sensibilidade em relação à memória”, garante, lembrando a obra da Capela de São Jerónimo, em Belém. “É um projecto seu menos conhecido mas que é notável pelo seu resultado espacial e sentimental. Faz um eixo espacial com a Torre de Belém. É um eixo simbólico entre a capela, que era onde os navegadores rezavam antes de partirem, e a Torre de Belém, às portas do rio.”

João Gomes da Silva não esquece também o projecto dos jardins da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, “uma obra ao nível da linguagem emergente daquela altura lá fora”.

São da autoria de Ribeiro Telles, entre outros projectos, o Corredor Verde de Monsanto e a integração da zona ribeirinha oriental e ocidental, na Estrutura Verde Principal de Lisboa. Gonçalo Ribeiro Telles também é autor dos jardins da sede da Fundação Calouste Gulbenkian, que assinou com António Viana Barreto (Prémio Valmor de 1975), e dos projectos do Vale de Alcântara e da Radial de Benfica, do Vale de Chelas, e do Parque Periférico, entre outros.

O Prémio IFLA Sir Geoffrey Jellicoe foi criado em 2004, e o primeiro galardoado, no ano seguinte, foi o arquitecto Peter Walker, dos Estados Unidos, seguindo-se, em 2009, Bernard Lassus, de França. Em 2011 foi distinguida Cornelia Hahn Oberlander, do Canadá, e, em 2012, Mihaly Mocsenyi, da Hungria.

Este galardão, considerado o “Nobel” da arquitectura paisagista, que tem paralelo no Prémio Pritzker de arquitectura, comemora a contribuição extraordinária para a IFLA do arquitecto paisagista britânico Sir Geoffrey Jellicoe (1900-1996), fundador daquela federação internacional.

O júri do prémio inclui arquitectos paisagistas das quatro regiões da IFLA, “que representam o âmbito académico, a prática pública e privada, e possuem um profundo conhecimento da profissão, dos seus profissionais-chave e da prática internacional”.

Nascido em Lisboa a 25 de Maio de 1922, Gonçalo Pereira Ribeiro Telles licenciou-se em Engenharia Agrónoma e formou-se em Arquitectura Paisagista, no Instituto Superior de Agronomia, na capital portuguesa, onde iniciou a vida profissional como assistente e discípulo de Francisco Caldeira Cabral, pioneiro da disciplina em Portugal, no século XX.

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