European House abre hoje o 30.º FITEI

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European House começou por ser cenografia - uma casa de vidro Ros Ribas

Hamlet tem posters no quarto do andar de cima - uma fotografia mítica de Che Guevara e isso diz muito acerca do programa ideológico de Àlex Rigola, um encenador que se não estivesse a fazer maionese com Shakespeare estaria a atirar-se às canelas dos países do G8 como um cão danado - e na divisão de baixo o sexo foi tão bom para a mãe dele, Gertrud, como para o amante dela, Cláudio.

O quarto de banho está ocupado, na cozinha há uma criada em stress pós-traumático e do outro lado da porta os amigos fazem sala: o pai de Hamlet acaba de morrer, mas a vida, esta vida que se transformou num espectáculo (numa telenovela da vida real, para citar um parente directo desta criação do pós-Big Brother), tem de continuar. Ou não, diz Àlex Rigola, que hoje abre a 30.ª edição do FITEI - Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica, no Porto, com European House - Prólogo a um Hamlet sem Palavras: a Europa é uma parada de zombies, aceitam-se apostas sobre quanto tempo vai durar.

A imprensa espanhola chamou vários nomes a European House, a primeira criação de raiz (até aqui tinha havido textos fundadores da dramaturgia universal) do encenador-prodígio catalão: nomes como Dogville vertical ou Magnólia sem chuva de rãs. E há de facto tanto do voyeurismo de Von Trier como desse filme em que Paul Thomas Anderson faz a autópsia de uma família de mortos-vivos - mas, mais do que isso, há muito da Janela Indiscreta de Alfred Hitchcock, só que aqui os voyeurs não precisam de binóculos nem de teleobjectivas, como James Stewart. Rigola não consegue fazer teatro sem cinema (em Santa Joana dos Matadouros, de Brecht, a primeira montagem que o director do Teatre Lliure, de Barcelona, mostrou em Portugal, víamos Maria Falconetti a começar a derreter num filme de Carl Dreyer, A Paixão de Joana d"Arc; em Ricardo 3.º, que passou por Faro há um ano, pôs as personagens a cortar linhas de coca com cartões de crédito num bar manhoso dos anos 80, como pequenos mafiosos de Tarantino).

Sem palavras

Desta vez faz uma coisa ainda mais difícil - teatro sem palavras, como aquilo que vemos quando vamos à janela e percebemos tudo o que se passa em casa dos vizinhos, mas não ouvimos nada. Foi assim que tudo começou (e não com Shakespeare). "Pela primeira vez desde que estou no Lliure, partimos para uma criação sem um texto", explica Àlex Rigola ao P2, por telefone. "Começámos com um espaço cénico: havia esta ideia de fazer uma casa porque do meu apartamento eu via os andares dos vizinhos. Às tantas pensei que seria lindo se eu pudesse ver tudo o resto, e não apenas o que acontece em frente àquelas pequenas janelitas. Fizemos uma casa com paredes, e não apenas com telhados, de vidro. Vemos o que eles fazem, não ouvimos o que dizem." Depois diz o que diz sempre: este é "um espectáculo para voyeurs". Hamlet toma um duche enquanto a mãe vai para a cama com o amante, e isso acontece à nossa frente, numa das sete divisões da nossa casa, a Europa.

Também foi aí, na Europa, que tudo começou. Rigola queria fazer o retrato de uma família burguesa - o Velho Continente tal como o conhecemos. "Queria que nos víssemos à lupa, que víssemos realmente como somos, neste momento em que nos achamos um exemplo a seguir pelo resto do mundo. Esta casa de três andares somos nós - com os nossos criados, os imigrantes do andar de baixo", argumenta. O que se consegue dizer da Europa, em silêncio? Tudo. "As personagens não trocam uma única palavra entre si - é como se o debate tivesse desaparecido daquela família, da nossa família. Absorvemos a realidade como mortos-vivos." Este é o statement de Àlex Rigola, o resto é connosco: "Nós damos uma patada para ver se alguma coisa mexe."

E o que faz Hamlet nesta casa do século XXI? Faz as perguntas que os outros não fazem, responde Rigola. "Hamlet é a primeira personagem renascentista do teatro europeu. É um filho da Idade Média que se torna renascentista no momento em que começa a perguntar-se certas coisas. Nós, os europeus do século XXI, estamos na Idade Média: perguntamo-nos muito poucas coisas", continua. Não é essencial saber que, depois deste prólogo ficcionado por Rigola, vão acontecer as coisas ficcionadas por Shakespeare. "Tem muito mais graça assistir ao primeiro beijo do Hamlet e da Ofélia se os espectadores reconhecerem a história. Sei que Shakespeare tem a grandeza de dispensar actualizações, mas acho que é vantajoso aproximarmo-nos das personagens."

Não da maneira que nos aproximamos no Big Brother: "Aqui as personagens não têm medo de ser expulsas de casa. Segui o primeiro Big Brother espanhol com bastante interesse, mas depois começou a aborrecer-me. O que acontece nas ruas e na casa dos vizinhos é muito mais interessante."

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