Está a assistir a um concerto rock? Então, comporte-se, por favor!
Este ano muito se falou da conduta do público nos concertos, porque passa o tempo a tirar fotografias ou a falar entre si, mais interessado em reportar a experiência do que em vivê-la.
Existe quem conteste este procedimento rebatendo que acaba por criar um clima intimidatório ou que reprime a espontaneidade na recepção, fazendo parte de um processo de sacralização da concepção da música e do ambiente propício para a apreciar.
Os que apoiam as restrições argumentam por sua vez que a experiência de um concerto de música clássica só é total quando existe silêncio absoluto. Na sua visão nada mais favorece a contemplação da música do que o sossego, havendo quem defenda que a formação dessa sensibilidade se deve à cultura fonográfica do século XX que permitiu a qualquer pessoa ouvir música comodamente instalado no sofá da sua sala de estar.
O curioso é que este debate está a passar-se agora também nos concertos de música popular. Nunca como este ano se falou tanto da forma como a experiência de assistir a um concerto rock ou pop está a transformar-se e não necessariamente para melhor.
As reclamações mais ouvidas, quer do público, quer de alguns músicos, prendem-se com o facto de muitas pessoas passarem o tempo a tirar fotos com os telemóveis, ou a interagirem em directo para as redes sociais, ou de provocarem ruído falando constantemente com os parceiros do lado. Em síntese, dizem os críticos, existe cada vez mais gente interessada em exteriorizar a sua experiência e não de a interiorizar verdadeiramente.
O grupo feminino inglês Savages, uma das sensações do corrente ano, que tocou por duas vezes em Portugal em 2013, são uma das mais acérrimas defensoras que o público deve estar concentrado com o que ouve e vê no palco e não tanto em tentar reportá-lo.
É aliás comum colocarem um letreiro à entrada dos concertos onde se pode ler que o seu objectivo é descobrir formas melhores de experienciar a música. Na sua visão a utilização de iPhones para filmar ou tirar fotografias impede a imersão total na música.
Os americanos Yeah Yeah Yeahs são outros que fazem o mesmo. “Por favor não assistam ao concerto a partir da câmara do vosso telemóvel” pode ler-se nos letreiros postos nas salas de concertos.
O importante festival Unsound, que se realizou na Polónia em Outubro, foi ainda mais longe, proibindo o público de tirar fotos e gravar vídeos durante as actuações para se concentrar no momento. A proibição não foi supervisionada por nenhum corpo de segurança. Era o próprio público que se vigiava, depois de uma campanha encetada pelo festival que apontava nesse sentido.
A medida não afectou apenas os festivaleiros. A imprensa também não teve direito a acreditações. Apenas um fotógrafo retractou discretamente os concertos realizados, dessa forma tentando recentrar a atenção do público na música e nas performances.
O resultado da interdição foi mais criativo do que se esperava. Em vez de fotos granuladas do Instagram, uma série de artistas, de forma espontânea, dedicou-se a pintar as diversas actuações, acabando por daí resultar uma exposição com as melhores.
Em Portugal ainda não se assistiu a nada do género, embora o fenómeno não passe ao lado da maior parte dos agentes envolvidos. O músico Paulo Furtado (Legendary Tigerman, Wray Gunn) diz-nos que “já há muitos anos quando apanho alguém distraído, fora do concerto, ou a conversar demasiado alto”, lhe chama a atenção. “Normalmente resulta e não se repete”, declara.
Diz compreender acções como as das Savages. Alega que não tem razões de queixa do seu público, embora também peça para não fotografarem ou filmarem. “É mais bonito gravar momentos na memória e partilhá-los pela boa e velha tradição oral”, justifica.
O cantor e músico Miguel Ângelo expõe que quando está em palco é imune a distracções. “Nunca me desconcentro com o público, até porque quando isso acontece esqueço-me das letras”, graceja. Já enquanto espectador acha a situação “um pouco chata”, comparando-a com a prova do cinema, quando à volta existe quem não pare calado por um momento. Mas ressalva que “os músicos não podem querer, à força, que o público se concentre no seu espectáculo”, numa alusão a acções como das Savages. “Antes produzam e apresentem algo que o faça por si.”
O músico Rui Maia (X-Wife, Mirror People) compara um concerto a ver-se um filme ou assistir-se a uma peça de teatro. Ou seja, diz, “gosto de estar atento a todos os detalhes, deixar-me levar pelas sensações e sons que são enviados do palco.” Na sua visão isso só é possível com atenção e dedicação ao espectáculo. “Se te distraíres com outras coisas acabas por perder o sentimento.”
Posições como a das Savages e Yeah Yeah Yeahs são-lhe simpáticas. “Todos os artistas deveriam tomar uma posição igual. Um concerto deve ser sempre uma espécie de celebração e partilha de sensações – e apenas sem filtros conseguimos estar inseridos em todo o ambiente.” E conclui: “um bom espectáculo pode mudar a nossa vida. Não devemos brincar com isso!”
O seu companheiro nos X-Wife, o cantor e músico João Vieira, que também tem um projecto a solo intitulado White Haus, é menos taxativo, dizendo compreender as Savages, mas “não é algo que eu faria”, declara. “Acho que isso tem de partir do bom senso de cada um.” Enquanto músico, diz não o incomodar o eventual alheamento da assistência, mas como espectador é diferente: “não é agradável levar com dezenas de smartphones que me impedem de ver o palco, principalmente em grandes festivais.”
Este ano muitos músicos, como a americana Fiona Apple, protestaram pela desatenção ou pelo ruído das assistências, mas o antagonismo maior nasce no seio do próprio público. Vai sendo cada vez mais frequente assistir a momentos de hostilidade entre assistentes ou a olhares reprovadores, como na música clássica.
Habituado a assistir a concertos desde a década de 1980, o designer gráfico Duarte Varas, é crítico do panorama actual. “Não me incomoda que as pessoas tirem algumas fotos, isso parece-me normal, mas hoje existe quem não faça outra coisa durante duas horas. Passam o concerto inteiro a vê-lo por uma mini câmara e para quê? No final pouco ou nada se aproveita, porque a generalidade das fotos e vídeos não prestam e acabam por não estar imersos no ambiente e não deixam que outros estejam.”
Opinião diversa tem Lurdes Romão, de 31 anos, que não vê grandes inconvenientes no comportamento do público, optando por realçar os eventuais benefícios. “As pessoas não estão a passar ao lado da experiência, estão a vivê-la de outras formas. Alguns grupos não gostam de ser fotografados e filmados, mas muitos outros acabam por beneficiar dessa exposição que os seus fãs lhes proporcionam, colocando fotos nas redes sociais ou partilhando os vídeos no YouTube. Trata-se de publicidade gratuita.”
Algures, no meio, estará a razão. O músico francês Etienne Daho dizia há uns meses que “já não escutamos, nem cantamos, optamos antes por comentar no Twitter os acontecimentos a que estamos a assistir” e tem alguma razão. Na teoria os enfoques da experiência parecem multiplicar-se. Na prática podemos passar ao lado dela. Depende muito da predisposição de cada um. Uma coisa parece quase certa: dificilmente haverá travão no hábito contemporâneo de documentar cada instante em directo.
“O problema não são os actos, é o excesso dos mesmos” comenta Duarte Varas. “É passar-se o tempo todo a tirar fotos ao longe que inevitavelmente ficarão más e depois ainda ver emails ou fazer comentários no facebook e por aí fora. Para já não falar de quem passa um concerto, à nossa frente, aos gritos com os amigos.”
No fim de contas ninguém deseja que se perca a interacção espontânea do público com algo emocional como os concertos. O que todos desejam é que prevaleça um certo equilíbrio ou essa coisa fácil de dizer e difícil de definir chamada bom senso.