D. João V, Baltazar e Blimunda vão continuar a andar pelo convento porque Saramago não vai deixar Mafra
A eventual saída do romance Memorial do Convento dos currículos do 12.º agitou a vila, mas no palácio a obra do Nobel português promete continuar a encher os corredores de estudantes. Pelo menos para já.
O processo de consulta pública destes novos objectivos, que prevêem que o Memorial venha a ser trocado por um de dois outros romances do Nobel da Literatura português, que morreu em Junho de 2010 (O Ano da Morte de Ricardo Reis e História do Cerco de Lisboa), já terminou, mas só depois do Natal, quando estiverem analisados todos os contributos, se saberá que livro terão os alunos de ler (ver texto nesta edição). E até que a decisão produza efeitos, diz Mário Pereira, director do Palácio Nacional de Mafra há quase seis anos, muitos estudantes andarão pelos corredores daquela que é a grande obra de regime de D. João V.
No átrio, quando passam poucos minutos das dez, as turmas de 11.º e 12.º anos que vieram de Coimbra para fazer a visita guiada que o palácio propõe, orientada para a contextualização histórica do Memorial, e a peça de teatro que lhe está associada, misturam-se com os alunos do 4.º da Venda do Pinheiro, que vieram ver como se vivia ali no século XVIII, entre marquesas e marqueses. Mas, na hora de começar a subir as escadas, os grupos separam-se. A do romance é a visita mais concorrida. Na manhã em que o PÚBLICO andou pelo convento, estavam marcadas seis turmas de escolas de Paredes, Caldas da Rainha e Ramada, mas dias há em que chegam a ser oito ou nove, o que faz com que os técnicos que acompanham os alunos estejam sempre a controlar os relógios para que não haja atrasos nem sobreposições, como numa enorme linha de montagem.
O período de “maior loucura”, diz Eduardo Silva, um dos guias, coincide com o calendário escolar, entre Outubro e Junho, e quando já se esgotaram as vagas aos dias de semana, há turmas a fazer o percurso aos sábados e domingos (o palácio só fecha às terças). Não é de estranhar, por isso, que Mário Pereira se preocupe com os efeitos que a eventual mudança curricular trará no fluxo de visitantes do monumento, embora esteja já a preparar-se para ela, pensando em projectos alternativos. Não deixou, no entanto, de manifestar o seu desacordo com a proposta de alteração e chegou mesmo a dar o seu contributo na consulta pública que o Ministério da Educação e da Ciência pôs em marcha e a escrever às 1018 escolas que têm nos registos do palácio.
“Nunca quisemos que o nosso programa do Memorial se sobrepusesse à leitura nem pretendemos questionar os motivos científicos para a alteração do currículo, mas não podemos deixar de defender que continue a ser obra obrigatória”, diz ao PÚBLICO. “E não é só pela importância que a obra tem na dinâmica dos visitantes escolares que temos aqui – é pela importância da própria obra, que também nos traz muitos estrangeiros por causa das traduções [está disponível em 40 idiomas].”
Novos projectos
Desde que foi introduzida nos currículos escolares como obra de opção em meados da década de 1990, o Memorial do Convento já levou ao palácio e convento de Mafra, cuja construção lhe serve de cenário, 250 mil alunos. Nos primeiros anos em que a visita orientada para a integração histórica do romance funcionou, os números não eram expressivos mas hoje, em muito graças ao passa-palavra, ela leva ao monumento, em média, mais de 200 alunos do 12.º por dia.
Os números de 2012 são esclarecedores: dos 235 mil visitantes do monumento, cerca de 46 mil são público escolar (1976 grupos de 753 escolas) e, desses, 41 mil devem-se à obra de Saramago (17% do geral, 89% do escolar), participando em percursos orientados ou assistindo à encenação do romance, ambos a cargo de empresas privadas para as quais reverte boa parte das receitas destas actividades (as visitas custam 3,70 euros por aluno e o teatro oito).
No ano passado, segundo dados da Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), organismo que tutela o monumento, as receitas gerais de bilheteira ascenderam a 260 mil euros, 26 mil dos quais resultando directamente das actividades ligadas às escolas.
Para já, Mário Pereira não está a pensar em acabar com os percursos temáticos do Memorial, até porque muitos dos 70 mil estrangeiros que visitaram o palácio no ano passado traziam o livro por referência. Além disso, lembra, o Memorial do Convento continuará a ser a obra para os alunos do 12.º ano durante os próximos três anos lectivos. Isto, porque está previsto que o programa do ensino secundário seja aplicado de forma progressiva, ou seja, apenas aos alunos do 10.º ano em 2015/2016, que serão os primeiros a ler uma das obras alternativas de José Saramago quando chegarem ao 12.º ano, em 2017/2018.
Em complemento, no entanto, a equipa do palácio está já a trabalhar em novas visitas guiadas e tem em carteira uma série de projectos que gostaria de ver concretizados nos próximos anos, embora sejam muitos os constrangimentos orçamentais: a prioridade máxima é o restauro do carrilhão, orçado em dois milhões de euros; mas há ainda em cima da mesa a melhoria das acessibilidades, a recuperação do núcleo de escultura do palácio, a criação de um museu da construção para que as pessoas percebam melhor o que implicou pôr de pé o gigantesco monumento, a exposição do tesouro da basílica e o estudo e dinamização da grande biblioteca que guarda 40 mil volumes, uma referência em termos mundiais no que toca ao conhecimento do século XVIII.
“Não estamos parados, mas também não queremos que Saramago e as suas personagens deixem os corredores deste monumento”, acrescenta o director.
UNESCO em 2017?
Ainda que o impacto económico das visitas e do teatro à volta do Memorial não ultrapasse, em termos de receitas para o monumento, os 10%, Mário Pereira sublinha a sua importância cultural e o papel que tem em três empresas privadas da região, que asseguram estas actividades.
Hélder Sousa Silva, o social-democrata que preside à Câmara de Mafra, junta-se a Mário Pereira nas críticas à alteração curricular proposta. Embora reconheça que não tem números concretos para apresentar, garante que tirar o romance da lista de leituras obrigatórias vai fazer “um rombo” nas contas da restauração da vila. “Basta entrar nas pastelarias e cafés onde estes miúdos vão almoçar para perceber o impacto que terá se deixarem de vir”, diz ao PÚBLICO. O autarca falou com muitos dos comerciantes de Mafra antes de emitir um comunicado em que manifestava o seu desacordo em relação à mudança. “Muitos destes alunos vêm com a escola e, depois, arrastam os pais e os irmãos mais novos.”
No restaurante Paris e na pastelaria Fradinho a proposta de mudança não era ainda conhecida. Nuno e Luísa Azeiteiro, proprietários do primeiro, dizem que ela não os afecta directamente, já que os alunos não os procuram, mas defendem que para outros negócios da vila será “dramático”: “Na cervejaria e na hamburgueria vai ser um caso sério porque eles param lá muito e é por isso que acho muito bem que o presidente [da câmara] proteste. E se ele quiser que eu assine algum papel contra a mudança também assino.”
Elisabete Évora, funcionária do Fradinho, diz que se isso acontecer o movimento pode cair “e muito”, lembrando que na peça de teatro inspirada no romance chegam até a fazer referência ao doce típico da casa, que tem o mesmo nome da pastelaria e o mesmo tipo de certificado de autenticidade do pastel de nata.
Se a saída vier a confirmar-se, defende Mário Pereira, a autarquia terá mais razões ainda para retomar um projecto que tem estado parado – a candidatura do monumento e da tapada real que lhe pertence a património mundial da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura). Hélder Sousa Silva diz que essa é a sua prioridade na área da Cultura e promete para o início do próximo ano reformular a comissão que para ela foi criada e pô-la a trabalhar de forma a que, em 2017 (ano em que passam três séculos sobre o lançamento da primeira pedra), Portugal esteja em condições de a apresentar. A articulação do monumento com o romance que José Saramago lançou em 1982 será, certamente, um dos pontos fortes da candidatura.
Realidade e ficção
Para a técnica Fernanda Santos, a presença de Saramago e das suas personagens é já absolutamente familiar. Conhece muito bem cada recanto do palácio. Começou por dar aulas de História antes de fundar, há 27 anos, o serviço educativo onde trabalha e já formou muitos guias. A ela e à sua equipa se deve o guião da visita temática, assim como a inclusão da encenação teatral.
A visita começou em meados da década de 1990, quando o romance de Saramago passou a figurar nas listas de opção curricular, ao lado de Aparição, de Vergílio Ferreira, e desde então tem sido revista e melhorada. É, garante esta técnica de 57 anos, a mais bem-sucedida actividade do serviço que dirige e foi desenhada para “plantar nos alunos o prazer da leitura”, sem a pretensão de se substituir ao romance. “O objectivo é espicaçar-lhes a curiosidade para o texto através da época em que ele se passa, da sua organização política, da arquitectura e da arte, da personalidade do próprio rei, sempre com o monumento como referente”, explica Fernanda Santos. “É preciso ver que muitos dos alunos do 11.º e 12.º que aqui chegam para a visita deixaram de ter História de Portugal no 6.º ano e, sem ter o contexto, torna-se muito mais difícil compreender o romance.”
Saramago, diz, passa a obra a estabelecer paralelos entre o Portugal do século XVIII e o do seu tempo, num registo que, colando-se muito à sintaxe do barroco, é “profundamente crítico, cáustico”, ridicularizando o rei e todos os outros poderosos para enaltecer o povo. É por isso que, em vários momentos da visita, a guia Cristina Melo interpela os alunos fazendo citações da obra com descrições do monarca nada abonatórias, alternadas com outras em que se torna evidente o enorme esforço humano que a construção do palácio e do convento exigiu. Fala-lhes dos três mil soldados que asseguravam a ordem nos estaleiros e na aldeia; dos 45 mil operários que ali trabalharam, na sua maioria contrariados, muito mal pagos, vivendo em barracões de madeira e em condições miseráveis; dos canteiros que trabalhavam de noite para que a obra não parasse; e dos engarrafamentos de carros de bois. Confronta-os depois, por oposição, com a sumptuosidade da festa para 20 mil convidados da elite europeia que o monarca deu na altura da consagração da basílica, construída em tempo recorde, com o detalhe dos sapatos de prata e seda que D. João V calçava ou com a sua obsessão por imitar a grandeza da corte papal sem olhar a meios nem a gastos.
“Esta visita torna o livro mais próximo porque lhes permite sentir o espaço em que tudo acontece, embora Mafra estivesse ainda a ser construída durante o Memorial…”, diz Cristina Melo, a quem cabe a tarefa de explicar que, embora baseado em factos reais e numa investigação cuidada que o escritor faz recorrendo a documentos da época e outras fontes, se trata de uma obra de ficção a que não se deve exigir, a toda a hora, rigor histórico. “Os aspectos literários não são preocupação nossa, mas dos professores”, acrescenta. O que aqui importa é que eles olhem para Mafra através do livro e para o livro através de Mafra.
E para o fazerem, nada melhor do que humanizar a figura de D. João V e da sua mulher, Maria Ana da Áustria, ou de que os pôr a olhar para a pedra da varanda da fachada principal da basílica, a mesma que, no romance, demora dias a chegar a Mafra e cujo carro que a transportava corta ao meio Francisco Marques, o operário que só queria passar por Cheleiros porque estava cheio de saudades da mulher.
“Este monumento é o capricho de um rei que casou com uma mulher muito mais velha, que fez uma promessa para ter descendência legítima [tinha filhos das suas amantes, entre elas a madre Paula, freira em Odivelas], que só visitava o quarto da rainha duas vezes por semana porque um contrato o obrigava… É muito importante que eles percebam que a noção de intimidade no século XVIII entre um rei e uma rainha era muito diferente, sobretudo quando comparada com aquilo a que eles gostam de chamar ‘o amor verdadeiro’ que une o outro casal do romance – Baltazar e Blimunda”, explica a directora do serviço educativo, que muitas vezes vai buscar filmes como Vatel, de Roland Joffé, para que os alunos possam ter melhor noção do ambiente da época.
Ler em voz alta
Enquanto percorrem o longo corredor (os tais 232 metros) que separa o torreão Norte do Sul – a casa do rei da casa da rainha –, os alunos da Jaime Cortesão vão ouvindo falar de autos-de-fé, de denúncia e tortura, mas também dos excessos de poder da igreja, da máquina de voar de Bartolomeu de Gusmão, um sonho partilhado por muitos homens, e de um amor que resiste à morte.
Cristina Ferrão dá aulas de Português ao 12.º ano nesta escola secundária de Coimbra, é professora há 23 anos e há mais de dez que faz questão de trazer os seus alunos a Mafra sempre que chega a altura de ler o Memorial do Convento. E não é só porque a visita guiada faz parte do plano de actividades da Jaime Cortesão.
Para garantir que ela acontece há que agendar a visita mal começa o ano, explica, e às vezes é preciso pôr um funcionário da escola de plantão ao telefone para conseguir essa marcação para o 2.º período, já que a procura é grande. “Às vezes isto parece a urgência de um hospital – está sempre impedido”, diz. “Mas nós insistimos porque a visita e o teatro ajudam os alunos a entrar na obra, predispõem para o que vão ler e tornam o romance, de alguma forma, mais objectivo, apesar de ser ficção.”
A eventual saída do romance de Saramago do currículo obrigatório é para Cristina Ferrão um erro, sobretudo se a justificarem com o facto de ser uma obra muito complexa que exige uma maturidade de leitura aos alunos que eles não têm, como escreveu o académico Carlos Reis num artigo de opinião do jornal I no início da semana passada. E, em contraposição, a professora de português vai buscar outros três romances: “A estrutura de Os Maias não é menos complexa; a Aparição está muito mais distante deles porque nos fala da morte e é extremamente filosófica e reflexiva; e o Amor de Perdição é um livro que simplesmente não lhes interessa porque eles têm dificuldade em aceitar aquele amor excessivo que acaba por levar à morte.”
O Memorial…, defende, não é uma obra mais difícil de dar, pelo contrário, e a oralidade pode ser uma óptima ferramenta para entrar no ritmo e na linguagem que ela propõe. Cristina Ferrão, tal como a directora do serviço de educação, encoraja os alunos a ler pelo menos as primeiras dez páginas em voz alta.
Para as suas alunas, este romance não é mais complexo que outras obras que tiveram de dar em anos anteriores, como Os Lusíadas, embora a linguagem esteja longe de ser fácil e as descrições de Saramago sejam por vezes “demasiado longas e pormenorizadas”.
“Não acho que me falte maturidade – falta-me é vocabulário”, diz Andreia Cruz, que até gosta de ler. “Há muitas palavras que não compreendo e isso dificulta, mas vamos ao dicionário na Net e continuamos.” Ao seu lado, Carina Henriques acrescenta: “Começar a lê-la custa pela maneira que ele tem de escrever, que não se parece com a nossa. E se não entrarmos logo no romance, é difícil acompanhar as personagens que não são principais.”
Percorrer o palácio da basílica à biblioteca, reparando nos pormenores das esculturas ou do retrato do rei, e ouvir Cristina Melo falar do dia-a-dia da construção ou do que era viver por aqueles corredores, sempre sujeitos a pequenas conspirações domésticas, ajuda estas estudantes de Coimbra, garante outra delas, Carolina Duarte, a responder a um dos maiores desafios da obra: imaginar. “Nós estamos muito habituados a imagens em todo o lado, nos computadores, nos telemóveis, na televisão… E quando pegamos neste romance temos de imaginar muito só a partir da escrita, que muitas vezes tem palavras que não conhecemos. A visita e o teatro tornam as coisas mais fáceis.”
O palácio e convento de Mafra funcionam como uma porta para a ficção, defende Fernanda Santos, e o monumento torna o romance “mais verdadeiro”. “Tirá-lo do currículo não vai mudar a relação entre as duas coisas, mas vai afastar muitos alunos da vila, o que é pena. Nem todos virão só à procura de D. João V”, o rei do barroco português que Saramago faz questão de ridicularizar, nos seus sapatinhos de seda.