Christie’s mantém vontade de leiloar a colecção Miró apesar de nova providência cautelar
Leiloeira reiterou vontade de levar as 85 obras à praça, depois de resolvidas as questões em tribunal. Passos Coelho diz que isto "não correu bem" mas a venda há-de acontecer a "curto-prazo".
O objectivo é começar tudo de novo. Ou seja, iniciar um novo processo de alienação, seguindo os passos que se saltaram neste processo e que acabaram por culminar na anulação da venda que devia ter acontecido em Londres nestes últimos dois dias. Numa breve nota enviada ao PÚBLICO, a Christie’s mostrou-se ontem disponível para avançar "quando estas diferenças ficarem resolvidas". Da parte do Governo, a decisão está mais do que tomada. E outras alternativas, como a manutenção da colecção em Portugal, não são sequer uma opção, como o primeiro-ministro explicou aos jornalistas à saída da apresentação de comissões parlamentares.
"A decisão [da venda] foi tomada há muito tempo", disse Passos Coelho, explicando que manter a colecção em Portugal implica um custo para o país. "É preciso um bocadinho de realismo, não podemos inverter as prioridades", continuou, explicando que mesmo que tivesse os "30/40 milhões" desta colecção, teria outras prioridades na Cultura à frente. E foi mais longe ao defender que não se pode "desviar as atenções do país para um caso que vale o que vale".
Sobre a iniciativa do MP, que depois do chumbo da primeira acção interposta no início desta semana, decidiu avançar com uma nova providência cautelar, justificando que "no âmbito de diligências dessa primeira providência" surgiram "actos susceptíveis de desencadearem a segunda providência", Passos Coelho limitou-se a dizer que este caso "não correu bem". A responsabilidade, essa, atribui-a à Christie’s, à semelhança do que já fizera Francisco Nogueira Leite, presidente do conselho de administração da Parvalorem e Parups (sociedades criadas no âmbito do Ministério das Finanças para recuperar créditos do BPN e assim proprietárias das obras). Era a leiloeira que tinha de "tratar de tudo". "É um contrato chave na mão, está muito claro e bem identificado", atestou Passos Coelho. Foi também esta a defesa do secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier. Já o Presidente da República Cavaco Silva recusou ontem comentar este imbróglio. "Tendo os quadros emergido como arma de arremesso na luta política e partidária, e tendo havido uma decisão de uma juíza, eu não devo comentar o assunto."
Em comunicado, Nogueira Leite já tinha defendido que ficou contratualizado com a Christie’s que esta trataria de todas as diligências a que o leilão obriga. Isto significa que teria de ser a leiloeira a "requerer e obter todas as licenças e autorizações necessárias para dar exequibilidade zelosa e cabal a todos os serviços contratados, nomeadamente, no que diz respeito à exportação para venda, embalagem, recolha, transporte, depósito, exposição, leilão, venda e entrega das obras de arte ao respectivo comprador".
No entanto, no despacho que o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa considerou ilegal, o secretário de Estado da Cultura Jorge Barreto Xavier declara "extintos os procedimentos relativos aos pedidos apresentados por Parvalorem e Parups de expedição temporária para o Reino Unido, para eventual venda das 85 obras da autoria de Joan Miró", atribuindo-se às sociedades gestoras esse acto. O despacho, datado de 31 de Janeiro, foi considerado ilegal pela juíza Guida Jorge uma vez que nesta data as obras já se encontravam em Londres há vários dias.
Também no documento enviado no início da semana ao Parlamento pela então directora-geral do Património Cultural, Isabel Cordeiro, esta detalha que já na última semana de Novembro — quando o leilão foi anunciado — os advogados da Parvalorem contactaram telefonicamente os serviços da DGPC "no sentido de saber quais os procedimentos inerentes à expedição de bens culturais". Isabel Cordeiro diz no mesmo documento que essa informação foi prestada à sociedade de advogados.
Este caso enfraquece a lei
A data em que realmente saíram as obras é para já um dado desconhecido, uma vez que nenhuma das partes envolvidas o esclarece. Sabe-se apenas que a Lei de Bases do Património Cultural, que obriga a que a saída de bens culturais seja precedida de uma comunicação à Direcção-Geral do Património Cultural com pelo menos 30 dias de antecedência, não foi cumprida. O Expresso avançou que as obras saíram do país por mala diplomática — ou seja, que o seu transporte teria sido efectuado como se se tratassem de propriedade do Estado, mas fonte oficial do Ministério dos Negócios Estrangeiros negou ao PÚBLICO esta informação. Fontes diplomáticas explicaram ao PÚBLICO, que segundo a Convenção de Viena, as malas diplomáticas só servem para documentos. Excepções existem mas a autorização tem de ser ministerial.
Questionada pelo PÚBLICO sobre este processo, a Christie’s, através da responsável para a comunicação no Reino Unido Hannah Schweiger, não quis responder, explicando que o tema é agora "objecto de uma acção legal". Mas deixou claro também que não são as contradições ou os processos um impedimento para que no futuro se vendam as obras, pelo contrário: "A Christie’s está pronta para apoiar uma venda futura".
Para o historiador de arte Paulo Pereira, que foi vice-presidente do Instituto Português do Património Arquitectónico, hoje DGPC, entre 1995 e 2002, período no qual foi aprovada a actual Lei de Bases do Património Cultural, "não adianta a Christie’s pôr asas de anjo em todo este processo. Nem vale a pena elogiá-la pelo seu bom senso no cancelamento do leilão." Se a Christie’s o cancelou foi, garante, por temer que não faria tanto dinheiro com ele como estava à espera.
Um dos resultados mais graves de todo este processo, faz notar Paulo Pereira, é o enfraquecimento da lei do património. Uma situação que se deve ao facto de o próprio Estado a ter desrespeitado ao autorizar a expedição das 85 obras da colecção para Londres sem que fossem cumpridas todas as formalidades que o diploma exige. "Este desrespeito tem de ser rapidamente corrigido e essa é uma das tarefas que o governo tem pela frente", diz o historiador. "É preciso ‘relegitimar’ a lei, valorizá-la como merece, e esse reforço só vem da vontade política. E a tutela da Cultura neste governo é do primeiro-ministro, um senhor chamado Pedro Passos Coelho." com S.C.A, L.C, B.R e N.R.