Banhos judaicos medievais descobertos em Coimbra
Técnicos da autarquia descobriram por acaso na cave de um prédio o que parece ser uma pequena piscina medieval para uso ritual de mulheres judias.
O arqueólogo Jorge Alarcão diz que, neste estado de conservação, “pode ser caso único em Portugal”. E o presidente da Câmara de Coimbra, Manuel Machado, embora ressalve que “o estudo do achado ainda está a decorrer”, admite que se trate da “descoberta arqueológica mais importante que se fez em Coimbra ao longo dos últimos 70 anos”.
Ou seja, depois da descoberta do criptopórtico romano, agora devidamente recuperado e visitável no recentemente reaberto Museu Nacional Machado de Castro, o achado destes banhos judaicos promete oferecer mais uma peça importante ao património de Coimbra. Mas ainda há muito a fazer. Neste momento, explica Manuel Machado, “está-se ainda a identificar os proprietários e os direitos envolvidos, uma vez que não havia qualquer registo daquela existência”. O autarca explica que o que agora se descobriu “está na cave de um prédio particular, ao lado da Ourivesaria Marialva”, mas alerta para a possibilidade de a investigação poder vir a revelar que este tanque integra um conjunto mais vasto, cuja área abranja também o subsolo de outros edifícios da zona.
O que para já se trouxe à luz parece ter boas possibilidades de ser um dos mais antigos banhos rituais judaicos (mikvá) descobertos na Europa, já que tudo indica que não seja posterior ao século XIV. E se efectivamente se destinava a banhos rituais femininos, é ainda mais raro.
A comunidade judaica está documentada em Coimbra desde tempos anteriores à nacionalidade, e sabe-se que a Rua de Visconde da Luz, outrora chamada do Coruche, era um dos limites da chamada judiaria velha, que terá sido desactivada no reinado de D. Fernando I, por volta de 1370. Daí que Jorge Alarcão acredite que estes banhos “já funcionavam certamente antes do tempo de D. Fernando”.
Avaria providencial
Se há males que vêm por bem, pode dizer-se que foi o caso com o rebentamento dos canos de esgoto de um prédio da Rua do Visconde da Luz, mais precisamente o n.º 21. Quando os técnicos municipais da Divisão de Promoção e Reabilitação da Habitação foram tentar resolver o problema, viram-se na necessidade de aceder a um espaço fechado nas traseiras do edifício. A divisão não seria usada há muito e foi preciso arrombar uma porta de metal. Verificou-se, então, que se tratava da entrada para uma cave, à qual se acedia por um lance de escadas em pedra. Nesta cave, uma nova abertura conduzia ainda mais abaixo, ao que parecia ser uma fonte de chafurdo ou mergulho (fontes das quais tradicionalmente se tirava água submergindo as próprias vasilhas).
Alertado o Gabinete para o Centro Histórico, foram feitas duas visitas ao local nos dias 18 e 19 de Novembro, que envolveram técnicos de várias especialidades, incluindo a arqueóloga Raquel Santos, a historiadora de arte Luísa Silva e o técnico de conservação e restauro Manuel Matias.
O que encontraram foi uma gruta natural de calcário, aparentemente utilizada para vários fins ao longo dos tempos. E quando desceram os degraus e viram a pequena piscina, começaram por admitir que pudesse efectivamente tratar-se de uma fonte de chafurdo. Mas à medida que investigavam mais minuciosamente o local, foi-se tornando evidente que aquele era um espaço que fora cuidadosamente concebido.
Por cima da cabeceira do tanque, descobriram-se mesmo vestígios muito razoavelmente conservados de um antigo fresco com motivos florais. Os técnicos estão convencidos de que esta pintura datará provavelmente dos séculos XVI ou XVII e corresponderá à última fase de utilização ritual deste tanque.
Dado que a estrutura se encontra na área da judiaria velha, e parece corresponder perfeitamente às descrições dos banhos de purificação judaicos da época, a convicção actual é de que se trata mesmo de uma mikvá (também grafado mikvah ou mikveh). Os frescos, e a própria dimensão reduzida do tanque, apontam para que fosse usado por mulheres.
A descoberta já foi comunicada à Direcção Regional de Cultura do Centro e, neste momento, segundo Manuel Machado, a prioridade é identificar todos os eventuais proprietários envolvidos, estudar o achado, garantir a sua preservação e verificar se não faz parte de um sistema mais amplo.
A fraude holandesa
E os próximos tempos servirão também para se confirmar de modo mais inequívoco que se trata mesmo de banhos rituais judaicos. Há precedentes de descobertas semelhantes cuja autenticidade veio a ser contestada. É o caso da mikvá da cidade holandesa de Venlo, descoberta em 2004, datada do século XIII e publicitada como a mais antiga do país.
O município gastou cerca de dois milhões de euros em obras de restauro e na construção de uma nova ala no museu municipal, onde os supostos banhos medievais judaicos iriam ser admirados. Mas afinal parece que a cave em causa nunca fora utilizada para quaisquer rituais judaicos e que o arqueólogo municipal fora instruído pelos seus superiores para defender a tese de que se tratava de uma mikvá e silenciar quaisquer hipóteses alternativas.
O que é significativo neste recente caso holandês é verificar-se que a descoberta de uma mikvá medieval é considerada suficientemente relevante para levar poderes públicos a tentar confirmá-la por meios fraudulentos. Com o turismo cultural judaico em franco crescimento, este é um tipo de achado que pode tornar-se altamente rentável. E a suposta mikvá de Venlo tinha ainda a adicional importância simbólica de atestar a existência de uma comunidade judaica fortemente estruturada muito antes da chegada ao país dos judeus fugidos de Espanha e Portugal.
Aquela que é reconhecidamente a mais antiga mikvá conhecida na Europa é a de Siracusa, na Sicília, que datará provavelmente do século VII. Bastante mais antigos são os banhos rituais judaicos descobertos em 2009 em Jerusalém, uma estrutura de grandes dimensões que se crê ser anterior à destruição do segundo Templo, em 70 d.C..
Nos meios do judaísmo ortodoxo a mikvá, que tem de ser alimentada por uma fonte natural de água, desempenha ainda hoje um papel importante. As mulheres usam as que lhes são destinadas para recuperar a “pureza ritual”, designadamente após o ciclo menstrual ou depois de um parto. Os regulamentos obrigam a que todo o corpo entre em contacto com a água e as mikvá actuais têm geralmente uma funcionária encarregada de ajudar as mulheres a cumprir correctamente este e outros preceitos.