As versões do traquina Robbie Williams num gigantesco parque de diversões
O primeiro dia do Rock in Rio 2014 começou sob o signo da soul. Depois, Robbie Williams foi entertainer a interpretar mil versões e Ivete Sangalo fez como habitualmente: levantou o pé do chão. No Rock in Rio, a música quer-se assim: a encher o olho e a entreter sem sobressaltar, sem desafiar, sem grandes surpresas.
Nas escadas de um dos inúmeros stands de patrocinadores dispostos pelo recinto, uma banda fanfarra toca uma versão de Paint it black, clássico dos Rolling Stones que estão aí não tarda (é já quinta-feira). A pouca distância, nas proximidades do Palco Vodafone por onde, à tarde, havia passado a soul dos Cais do Sodré Funk Connection e a pop do brasileiro Silva, várias dezenas de curiosos paravam para ver os corajosos que se aventuravam num salto de vários metros de altura (seis, oito, dez!) para um gigantesco colchão. A fila para os sofás insufláveis vermelhos, cuja popularidade devia ser caso de estudo pela Academia, continuava longa.
Até às 21h, a organização do Rock In Rio, que celebra nesta edição dez anos de vida portuguesa, contabilizara 57 mil entradas no Parque da Bela Vista, em Lisboa. O sucesso do festival é uma realidade indesmentível. Nele, a música é, digamos, a atracção nobre num gigantesco parque de diversões onde abundam as actividades: roda gigante, zona comercial repleta de lojas, aulas de dança, demonstrações de break-dance. Neste contexto, as bandas surgem para cumprir uma função: encher o olho e entreter sem sobressaltar, sem desafiar, sem grandes surpresas.
O primeiro dia do Rock in Rio Lisboa 2014, cumprido este domingo, foi, quanto a isso, exemplar. Porque até as surpresas (Ivete Sangalo a cantar Careless whisper dos Wham?) tiveram o conforto do reconhecimento (não foi giro ouvir Ivete Sangalo a dar balanço sul-americano à Careless whisper dos Wham?).
Robbie Williams 11 anos depois
Vejamos Robbie Williams. Saímos do curto concerto de uma hora e 20 minutos com a sensação que é impossível não simpatizar com o ex-membro rebelde dos Take That. Há nele um lado “clownesco” e um humor auto-depreciativo que cativa. Pede ao público que grite “Robbie, não engordes outra vez!” e pontua o final de um momento mais exigente de New York, New York, a de Sinatra, com um “shit!” proferido fora do alcance do microfone (mas nós lemos-lhe os lábios) — fá-lo como quem diz “porra, que isto foi difícil”. E, entre uma e outra coisa, não há forma de lhe desaparecer aquele sorriso de Joker traquina do rosto.
Williams regressava a Portugal, 11 anos depois de um concerto no então Pavilhão Atlântico, para promover Swings Both Ways, o seu segundo álbum enquanto crooner de outros tempos. Não foi bem isso que foi no Rock in Rio. Vestiu a pele de intérprete, vestiu fraque e umas luvas brancas. Apresentou-se: “Let me entertain you!” — não podia ser de outra forma. Depois, ouviu-se We will rock you, dos Queen, colado a I love rock'n'roll, de Joan Jett & The Blackhearts, e o público reconheceu e acompanhou com palmas e cantoria. Ouviram-se um par de canções da sua discografia, como Rock DJ ou Come undone, e regressámos às homenagens: Walk on the wild side a desaguar em Still haven't found what I'm looking for — microfone estendido ao público e o público a cantar como se Bono não estivesse distante.
A hora e meia de concerto é mais um musical que um concerto pop. Robbie Williams é um homem de palco inatacável num festival de massas como o é o Rock in Rio. Tem a graça de tipo que não se leva demasiado a sério e a desenvoltura de quem passou pela linha de montagem do estrelato que é uma boys band. E tem a voz afinada e apreço evidente pela obra de outros que interpreta. Tanto lhe ouvimos uma versão acústica de Wonderwall quanto, logo de seguida, o outro lado do britpop (e chegou a explosão eléctrica de Song 2, dos Blur, com metais incluídos porque a sua banda nesta digressão deverá ser, afinal, uma banda de swing à antiga).
Num momento está a passear pelo corredor frente ao palco, acompanhado pelas duas vocalistas de suporte, a recriar o Cotton Club para 50 mil (e sai uma Minnie the moocher, a dos anos 1930, a de Cab Calloway). Momentos antes, entregara-se a um medley onde se ouve Hit the road, Jack, de Ray Charles, ou a Reet petite, de Jackie Wilson. É o verdadeiro concerto jukebox, mas a jukebox é um tipo divertido com verdadeira noção de palco. Nada de substantivo. Nada mais que o sentido lúdico da experiência.
Robbie Williams pergunta quem irá ganhar o Mundial de futebol que se aproxima e, perante a resposta esperada (“Portugal!”), comenta para o lado: “Sabemos que não vai ser a Inglaterra...” Acto contínuo, lança-se num dos seus clássicos, Feel: “I just wanna feel, real love”, entoa a multidão. Nesse momento, o público não suspeitava, mas estávamos muito próximo do final. Um par de tiradas bem-humoradas depois — “menosprezei o quão em forma tinha de estar para tocar num festival, é trabalho duro e eu sou um homem velho, um homem velho e gordo” — e chega nova balada, uma das mais esperadas, Angels. Ele canta feliz, o público canta feliz com ele. Era o fim. Uma hora e vinte. Entretenimento garantido. Nada mais e nada menos que isso.
Todos Happy
Antes dele, o dia tinha pertencido à soul. Soul com os Cais do Sodré Funk Connection, sempre competentes na sua visita ao som clássico, eternamente groovy da Stax, da Motown e suas ramificações. Soul como entendida após a explosão de Amy Winehouse, mas falha de verdadeira alma, passe a redundância, com o encontro entre Aurea e Boss AC na abertura do palco principal, espaço para ouvirmos hip hop na Princesa ou Sexta-feira dele, para passarmos pela Ok alright ou a Scratch my back dela. Como não podia deixar de ser neste dia de versões, tivemos direito no final a uma interpretação da omnipresente Happy, essa que um dia foi de Pharrell Williams.
De seguida, novamente soul, ainda que tingida de refrões pop, e também como entendida após a explosão de Amy Winehouse. Perante nós uma banda bem versada na escola do groove, mas incapaz de outra coisa que fazer “à moda de”. Era a banda da britânica Paloma Faith. Padrão tweed da cabeça aos pés, cantou a sua Can't rely on you (composição de... Pharrel Williams, com piscadela de olho a Stevie Wonder), retirou prazer da nostalgia com uma versão de Crazy love, de Van Morrison, e despediu-se de um concerto simpático, mas que não deixará marca (falta-lhe o golpe de asa que a erga acima das referências), com uma balada guiada pelo piano intitulada Only love can hurt like this, o seu grande êxito, em que se entrevê Aretha Franklin no horizonte.
Seguir-se-ia o festim Robbie Williams e, depois dele, Ivete Sangalo com o seu samba e o seu axé a mil à hora, com um guitarrista a carregar na distorção hard-rock para temperar o conjunto e com Tempo de alegria logo a abrir, Arerê a meio e a fechar, “levanta o pé do chão” o tempo (quase) todo e um pouco de reggae (Could you be loved, de Bob Marley, também passou por ali) para um toque de diversidade.
Anunciado o regresso a Portugal em Março de 2015, pedidas palmas para Cristiano Ronaldo e para o internacional brasileiro Marcelo, vencedores sábado, pelo Real Madrid, da Liga dos Campeões de futebol, dançou-se mais um pouco até Ivete Sangalo sair de cena. Terminava, no palco principal, o primeiro dia de Rock in Rio. A tenda electrónica acolhia os resistentes entre as suas patas aracnídeas (o palco reproduz uma aranha), enquanto o restante público se encaminhava para os táxis e autocarros. Quinta-feira há mais. Quinta-feira há Rolling Stones e os bilhetes estão esgotados. Noventa mil no Parque da Bela Vista.