Almada, 30 edições depois, o ano zero
O festival de Almada apresentará 28 espectáculos vindos de mais de 10 países. Joaquim Benite, o fundador, é naturalmente a figura que se vai homenagear, homenageando assim a história do próprio festival.
Mas este ano o agridoce sabor do recomeço pesará sobre uma programação que não terá a defesa de Joaquim Benite, o fundador do festival que morreu em Dezembro. Será, por isso, e naturalmente, a figura do director e do encenador que será homenageada este ano já depois de o Teatro Azul, em Almada, ter sido renomeado Teatro Municipal Joaquim Benite, com um livro, um filme, uma exposição e um colóquio.
Esta relação com a memória atravessa toda a programação, composta por 28 espectáculos, explica o director numa conversa telefónica. Uma das linhas, precisamente por ser um ano de reinício, é a relação com os mestres. Rodrigo Francisco, que aprendeu o que sabe ao lado de Benite, chama-lhes “os guardiães da memória” e começa por destacar na programação as duas encenações de Peter Stein, que regressa a Almada com O Prémio Martin (Teatro Nacional D. Maria II, 10 e 11) e A Última Gravação de Krapp (10, Palco da Escola D. António da Costa, Almada). Mas destaca também O Principezinho, interpretado por José Luis Gomez (que protagonizou em 2011 em Almada Fim de Partida, encenada por Krystian Lupa), e as encenações do espanhol Teatro de la Abadia (13, também na Escola D. António da Costa) e de Luís Miguel Cintra, Ai Amor sem Pés nem Cabeça (dia 9, Teatro Municipal Joaquim Benite).
Uma programação para resistir que se espalha por Almada e Lisboa e que, em português e entre outros, junta os nomes de Miguel Castro Caldas que escreve para Cristina Carvalhal (I.B.S.E.N., Teatro da Trindade, 5 a 14), Jorge Silva Melo que escreve para Pedro Gil (Sala VIP, Culturgest, 6 a 9), Mónica Calle, Paula Diogo e Sofia Dinger que se juntam sob o signo de Doistoievski (Noites Brancas, Teatro Maria Matos, 9 a 14), o encenador e dramaturgo australiano Benedict Andrews, em estreia em Portugal pelas mãos de John Romão e Paulo Castro (Cada Sopro, Teatro da Politécnica, 10 a 18) e assinala o regresso de Rogério de Carvalho à Companhia de Teatro de Almada e a Strindberg em O Pelicano (Teatro Municipal Joaquim Benite, 16 e 17).
A edição recebe duas embaixadas de peso vindas do norte e do leste da Europa. O circulo afectivo de Almada alarga-se assim a duas visões sobre a Europa em todos os aspectos contrastantes: a do Norte, dita de sucesso, e a de Leste, feita de expectativas. O teatro, no meio disto, “serve para reflectir”.
Os títulos das peças são programas de intenções, “são modos de intervir”. De leste, da nova Europa que se alarga quando a velha Europa parece cair, virão Maldito Seja o Traidor da sua Pátria! (espectáculo de abertura no palco da D. António da Costa), do esloveno Oliver Frljic, sobre “o tortuoso caminho da dissolução da segunda República Jugoslava, questionando o silêncio surdo que se faz ainda ouvir”. E ainda Yellow Line (dia 15 também na escola), dos croatas Zagreb Youth Theatre, cuja história de uma vaca chamada Yvonne se tornou num símbolo de luta pelos direitos dos animais e da luta pela liberdade.
Do Norte a finlandesa Kamilla Wargo Brekling apresenta Mulher, Conhece o teu Corpo (dia 6, Fórum Romeu Correia), a partir de textos produzidos no auge do movimento para a libertação da mulher na Escandinávia. Uma peça que dialogará com Mulheres de Ibsen – Engaiolar uma Águia, apresentada no dia seguinte no mesmo teatro almadense, e põe em evidência o tema central das peças do dramaturgo norueguês e o âmago das suas personagens: a ânsia por liberdade.
França está presente, entre outros, com Emmanuel Demarcy-Mota, que traz Victor ou as Crianças ao Poder (Teatro Municipal Joaquim Benite, 6 e 7). E, por fim, apenas mais um exemplo, quando não se podem pedir as contas aos políticos – como fará o francês Theatre Liberté em Pays Natal (dia 8, no palco da escola), a partir do texto Morro como um País, do grego Dimitris Dimitriadis — pedem-se contas a Deus, como fazem os mortos da peça Eterno Sorriso, dos noruegueses Verk Produksjoner (dia 9, Forum Romeu Correia).
Exemplos de uma programação que “escolheu certo”, diz confiante Rodrigo Francisco, quando “sabíamos o que aí vinha: o desinvestimento na Cultura”. Exemplos que querem sobreviver a um orçamento de pouco mais de 500 mil euros, amplamente suportado pelos 145 mil euros de receitas próprias, e pela Câmara Municipal de Almada (200 mil euros). Os restantes 150 mil são a verba que a direcção destinou do apoio conjunto que a Direcção-Geral das Artes atribuiu para a programação anual do Teatro Municipal Joaquim Benite e as produções da Companhia de Teatro de Almada. “Não conseguimos orçamentar mais do que esta verba, um valor que é o mesmo que tivemos em 1997.”
Gesto simbólico: o regresso ao Pátio do Prior do Crato, na velha Almada, onde se realizou, em 1985, a segunda edição do festival, com E se nos Metêssemos ao Barulho?!, criação colectiva do francês Théâtre Dijon-Bourgogne com um elenco onde se encontra François Chattot e Martine Schambacher, autores e actores do espectáculo de honra do ano passado, Quoi Faire? (Le Retour). Um gesto de agradecimento, como diz Rodrigo Francisco, “para lembrar que um público mais informado e mais exigente reivindicará num futuro próximo aquilo que lhe é devido.”