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A toupeira e os leitores

1. Achei a toca onde moro graças a um leitor meu, que ainda há dias me bateu à porta como antigamente, PAM!, PAM!, PAM!, para me trazer laranjas, apesar de eu ser o eremitão, ou mesmo a toupeira do eremitão: o Zé, agricultor biológico, leitor de uma boa tralha. Num dia em que o Zé estava a ler este jornal, calhou de me ler, então quando vim ao Alentejo à procura de uma toca com quintal já ele sabia coisas de mim que eu nem lembrava, até de algum livro meu. Zé, hei-de sair da toca lá para o começo do Outono, quando os animais começarem a hibernar, contando que acabe este livro antes que ele acabe comigo. Mas ainda antes disso, pelo menos antes de ficar inteiramente maluca, passo-lhe a Inconstância da Alma Selvagem, onde o Eduardo Viveiros de Castro explica melhor aquilo da humanidade ser um ponto de vista (a onça vê-se como humana e vê o homem como caça, o homem vê-se como humano e vê a onça como caça, por aí fora). Não desista de mim, Zé, até já.

2. Quando esta crónica sair, já terei ido ao Porto, procurar livros de 1870 e ouvir canções de agora (para começar, as de Rodrigo Amarante, num disco chamado Cavalo em que estou viciada). Tanto os livros como as canções têm que ver com o tal livro que estou a escrever enquanto toupeira: há uma personagem que precisa dos livros e outras que precisam das canções. Mas o que importa aqui é que devo a toca onde terei ficado a uma leitora que está a morar no Rio de Janeiro. Isto porque resolvi pôr no Facebook que precisava de alugar algo junto ao Parque da Cidade durante esses dias tão bucólicos em que 20 mil pessoas estariam no Parque da Cidade. Um acto irreflectido, a não repetir, visto que os leitores são desmedidos, os leitores são obstinados, os leitores oferecem as suas casas mais ou menos até Espinho, e boleia para ir e voltar. Nunca vi esta gentil leitora, não trocara sequer uma palavra com ela, e a nossa conversa foi toda alentejana, naquele sentido de uma pessoa aqui no Alentejo ter de insistir para pagar. Nada carioca, concordámos ambas.

3. Eu devia ter lido os sinais. Num post anterior já pedira sugestões de alfarrabistas no Porto para poesia portuguesa do século XIX, e ao fim de alguns dias ainda estava a receber sugestões. Os leitores desdobram-se, vão buscar links, capas. Numa crónica recente cometi o erro de dizer: se virem por aí o Samba do Orestes Barbosa, interessa-me em qualquer estado. Pois um leitor antigo escreveu a ceder o exemplar da sua biblioteca e um leitor recente foi localizar um exemplar em Alcobaça. Os leitores não são razoáveis, os leitores descobrem livros brasileiros de 1933 em Alcobaça. Adoro Alcobaça, faz-me pensar em Inês de Castro, mas: Alcobaça? Quase me senti mal por já ter comprado o livro na Estante Virtual. Nunca mais dizer coisas assim, retóricas, se virem fulano, interessa-me em qualquer estado. Os leitores levam-nos a sério.

4. O amabilíssimo leitor de Geraz do Lima escreve cartas camilianas, manda fotografias dos carvalhos, dos nenúfares, um destes dias mandou um filme. Tenho uma banda larga móvel, o que significa que há uma altura do mês em que a Internet entra em TPM e eu transformo-me numa toupeira de mobilidade reduzida. Passa a ser uma odisseia fazer um download, portanto, ainda não vi o filme do meu leitor. Outra coisa essencial sobre os leitores: citius, altius, fortius. Eles estão sempre à frente.

5. À frente aos 71 como aos 17. Um leitor de 17 anos escreveu-me a propósito de um texto na revista Granta. O tema da revista é Casa, eu escrevi sobre o corpo enquanto casa, e ele quis dizer que se tinha sentido “próximo da confusão, do caos”, que ficara a pensar no corpo como “a casa mais turbulenta onde alguma vez viveremos” e que não sabia explicar bem nada disso. Eu também não sei explicar bem nada do que quis dizer, mas se um leitor de 17 anos escreve a dizer isto talvez o texto já se tenha transformado noutra coisa, também caótica, confusa, turbulenta, mas dele. Talvez a adolescência.

6. Um leitor de 17 anos: cacete, diria uma das minhas personagens. A Internet tem esta coisa extraordinária. Aos 17, eu não podia mandar mensagens ao autor que acabara de ler, muito menos ele responder uma hora depois (ou um dia, que fosse, nem havia telemóveis, quanto mais Internet). Agora, os leitores estão a um clique de quem lêem, a não ser que o autor seja toupeira a tempo inteiro.

7Não estou a falar de leitores de ocasião, daqueles que nos apanham uma vez ou outra. De entre esses, o meu favorito foi um indignado com a minha suposta mudança de nome. Ele apanhara qualquer coisa sobre um discurso político que eu fizera e queria dar a sua opinião: eu mudara de nome para não ser acusada de nepotismo. Aproveito mais esta ocasião para reafirmar que a minha amiga Alexandra Prado Coelho e eu somos duas cidadãs (com diferentes pais, mães, avós, tetravós, até onde sabemos) e não uma entidade sobre-humana que vai mudando o apelido do meio consoante as páginas desta revista e consegue entrevistar chefes de cozinha internacionais ao mesmo tempo que não sai da minha cozinha no Alentejo.

8. Autor e leitor não caminham na mesma direcção, e a excepção é que se cruzem. O que um e outro sabem que querem é distinto e autónomo. Podem coincidir no que não sabiam, mas isso não se procura. E que nenhum se acomode ao outro, porque o que um sabe que dá não é o que o outro sabe que recebe. Tenho sempre presente esta passagem de Herberto Helder (numa raríssima entrevista a Fernando Ribeiro de Mello publicada no Jornal de Letras e Artes n.º 139, de 17 de Maio de 1964): “O prestígio é uma armadilha dos nossos semelhantes. Um artista consciente saberá que o êxito é prejuízo. Deve-se estar disponível para decepcionar os que confiaram em nós. Decepcionar é garantir o movimento. A confiança dos outros diz-lhes respeito. A nós mesmos diz respeito outra espécie de confiança. A de que somos insubstituíveis na nossa aventura e de que ninguém a fará por nós. De que ela se fará à margem da confiança alheia.”

9. O leitor lê o que quer, lê ao contrário até, e é sempre o último a escrever. Ama e zanga-se, com sentido de posse, porque, mesmo que não o conheça de carne e osso, o autor é seu. O autor sabe disso porque também é leitor: sabe que o leitor tem na cabeça um autor que só existe na cabeça dele. Então o leitor quer dar-lhe coisas, segredos mesmo. Recebi cartas de leitores que talvez mais ninguém pudesse ler. A bondade dos estranhos coexiste com a violência dos estranhos, que coexiste com a intimidade dos estranhos. É assim. Há coisas radicais que só acontecem entre quem não se conhece.

10. Quem escreve está tão sozinho como cada um está sozinho até ao fim. Depois, o texto entra, ou não, em relação com o mundo, mas isso só acontece quando é lido. Produção e promoção já não são o autor, estão depois dele, venda e compra ainda não são o leitor, estão antes dele. O único frente-a-frente real é de um para um, escuro em volta, autor e leitor. Aí, quem escreve já não é aquele que está a ser lido. A toupeira está na toca, o autor na cabeça do leitor. E se o leitor não estiver lá, ninguém está.     

Foto
Alexandra Lucas Coelho

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