Direcção-Geral das Artes investe os valores mais baixos da década em apoios regulares à criação
Entre o último ano pré-troika e 2012, a flutuação negativa nos apoios da Direcção-Geral das Artes foi de 47%. O que está agora em causa é já a nossa identidade, a capacidade de nos pensarmos, disse quarta-feira na AR Catarina Martins, do BE.
Representando um decréscimo de 3,3 milhões, os 17,6 milhões de 2011 foram o mais baixo valor investido pela DGA em apoios pontuais, anuais, bienais, quadrienais e tripartidos desde 2005. Não tão baixo, no entanto, quanto os valores homólogos investidos por este organismo após a subida ao poder da actual coligação PSD/CDS-PP liderada por Pedro Passos Coelho.
Em 2012, com Francisco José Viegas como secretário de Estado da Cultura, a DGA investiu em pontuais, anuais, bienais, quadrienais e tripartidos apenas 11 milhões de euros, registando um decréscimo de 9,9 milhões de euros face ao último ano anterior ao programa de assistência financeira a Portugal. Depois, em 2013, já com Barreto Xavier na tutela, houve um ligeiro aumento: 12,3 milhões de euros, que representaram uma subida de 2,3 milhões em relação ao ano anterior mas que ficaram a uma distância de 7,6 milhões de uma recuperação dos valores pré-troika.
Devido a uma simultânea reorganização dos modelos de financiamento e das lógicas distributivas, é difícil aferir com rigor quanto desta flutuação negativa que em 2012 ultrapassou os 47% corresponde a um decréscimo efectivo do investimento na criação contemporânea (isto não pensando em áreas como o património, as bibliotecas e arquivos, teatros nacionais…). Mas, tendo em conta apenas os valores destes apoios regulares, que têm vindo a ser a base de sustentação da criação contemporânea portuguesa nas áreas da DGA, o actual SEC fica na inusitada circunstância de estar, simultaneamente, entre os que mais dinheiro tiveram para distribuir (quando mais próximo do terreno) e entre os que menos dinheiro permitem distribuir (uma vez chegado ao topo da pirâmide de decisão). E nem o desbloquear dos apoios à produção cinematográfica do Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA) altera essa contabilidade: nos 14,9 milhões de euros anunciados no fim de Março, com seis meses de atraso, a tutela identifica 50% de aumento em relação a 2011, mas não repõe os milhões que ficaram por investir em 2012, conhecido como o “ano zero do cinema português”, quando não foram abertos concursos, abrindo um vazio inaudito no sector.
E Barreto Xavier assume as suas funções de topo, também, como detentor de um orçamento bombardeado pela oposição como “o mais pequeno de sempre do sector” – com 174 milhões de euros previstos para 2014, num só ano, de 2013 para 2014, a tutela reconhece que a Cultura perdeu cerca de 15 milhões de euros, apesar de a oposição falar de somas entre os 20 e 26 milhões num orçamento considerado “pouco claro” e deliberadamente “feito de forma a dificultar a leitura” das verbas nele inscritas, realidade agravada pelo facto de a Cultura surgir aglutinada com a governação desde que deixou de ter o seu próprio ministério, em 2011 – entre as primeiras e mais polémicas decisões do actual executivo.
De qualquer forma, serão quantias baixas quando consideradas no contexto da economia nacional ou mesmo quando comparadas com as despesas noutras áreas da sociedade. Representam, no entanto, valores importantes num sector cronicamente subfinanciado e há já muito a tentar desesperadamente manter um equilíbrio de fio da navalha. Não só: representam perdas que vêm somar-se às sofridas paulatinamente ao longo da última década.
Em fractura
Cada vez mais longe da meta do 1% do Orçamento do Estado (OE) que parecia ao alcance da mão há 15 anos, quando a Cultura chegou a representar 0,7% do OE, o sector tem previstos para 2014 apenas 0,2% do OE.
Desde o início, Barreto Xavier tem-se afirmado com a posição geral do Governo de que todas as áreas têm de participar na consolidação das contas públicas. No princípio de Novembro, por exemplo, na Assembleia da República, admitiu que orçamento da Cultura para 2014 “não é o desejável”, mas definiu-o como “o possível” – uma maneira de dizer que não poderia ser de outra forma nem haver mais.
Pelo seu perfil, não seria de esperar de Barreto Xavier posicionamentos – e muito menos públicos – de fractura aberta em relação à linha dominante do Governo de que aceitou fazer parte. Para mais, tendo apenas o estatuto de secretário de Estado, sem assento no Conselho de Ministros e na dependência directa do primeiro-ministro. Outra questão é quão longe é possível levar esse jogo de fidelidade sem deixar a nu o grau de desprotecção a que uma tutela com esse tipo de postura pode sujeitar um sector. Sobretudo quando o que está em causa é um sector construído em torno do “soft power” de protagonistas com um discurso crítico construído, especializado, em certos casos de grande visibilidade pública e influência.
Precisamente, foi desprotecção o que ficou à vista com o rebentar daquele que ao longo do primeiro semestre deste ano se tornou no mais quente dossier da Cultura: o “caso Miró”. Terrível ironia no percurso de um secretário de Estado que apenas meses antes, à sua chegada, fizera por se perfilar como figura salvífica noutra polémica em torno da saída de obras de arte do país: o caso do Crivelli que o empresário Miguel Pais do Amaral foi autorizado a vender fora do país depois de as protecções legais da obra terem sido indevidamente revertidas pelo primeiro titular da pasta da Cultura do actual Governo, o escritor e editor Francisco José Viegas.
Até hoje, um ano volvido, o “dossier Crivelli” continua mergulhado no segredo, com a SEC a impedir a consulta da respectiva documentação. Num contexto de vertiginosa fuga de património móvel do país, um dos rostos da crise e da falência de sistemas face ao qual se estima que em apenas três anos, entre 2009 e 2011, se tenham perdido cerca de 51 milhões de euros em obras de arte – três milhões em 2009, 37 milhões em 2011… –, continuam a não ser claros quais os exactos contornos da saída da “Virgem portuguesa” de Crivelli. Tal como até agora não são claros os detalhes da viagem até à Christie’s de Londres dos 85 desenhos e pinturas de Miró antes na posse do Banco Português de Negócios (BPN).
Sabe-se que os procedimentos impostos pela Lei de Bases do Património Cultural não foram respeitados – ou seja, sabe-se que a expedição das obras para Inglaterra em finais de 2013 foi ilegal. Por isso mesmo a Direcção-Geral do Património Cultural multou já a Parups e a Parvalorem, as duas sociedades anónimas criadas em 2010 pelo Estado para gerir os activos e recuperar créditos do BPN. Desta vez, porém, e ao contrário do que aconteceu com o Crivelli de Pais do Amaral, Barreto Xavier em momento algum sugeriu que a decisão final sobre o destino das obras seria revista. Pelo contrário.
Nas suas primeiras declarações públicas, sorriu à menção das críticas do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, que detectou as irregularidades processuais da saída. Invocou repetidamente um “banco nacionalizado pelo Governo anterior”, que, em 2008, “teria podido avançar oficiosamente com a inventariação das obras”. Como se imputar responsabilidades a governantes do passado ilibasse novos responsáveis de agir no presente. E falou também em tom desmerecedor num “pintor espanhol” – apesar de as leis de protecção de património móvel serem claras quanto à irrelevância de uma nacionalidade para efeitos de constituição do património público português, do qual se consideram potencialmente integrantes todos os bens “que representem testemunho material com valor de civilização ou cultura”.
Sobretudo, falou um membro do Governo que defendeu uma “alienação para salvaguardar necessidades”. Não se ouviu, praticamente, a voz de um secretário de Estado da Cultura. Nenhuma empatia, por exemplo, com os especialistas do sector que emitiram pareceres defendendo a permanência das obras em Portugal.
Noutros países – Inglaterra, por exemplo –, face a casos semelhantes, expõem-se as obras, tentam-se levantamentos de fundos junto de privados… No caso da colecção Miró está por perceber por inteiro, por exemplo, o porquê da recusa – vinda do primeiro-ministro – em vender a colecção ao empresário Rui Costa Reis, que se ofereceu para a manter no Porto durante 50 anos.
Não havia neste caso uma negociação passível de salvaguardar necessidades, impedindo, ao mesmo tempo, perdas patrimoniais imediatas? Quanto, afinal, deste caso é imputável ao quadro de contenção orçamental e quanto a um posicionamento político, ideológico? É difícil aferir.
Esta quarta-feira, na Assembleia da República, Catarina Martins, do Bloco de Esquerda (BE), começou uma intervenção de menos de três minutos explicando que no breve tempo que demorariam as suas palavras Portugal teria gasto mais em juros da dívida pública do que aquilo que investe em criação artística em todo um ano.
Na intervenção dedicada à apresentação de uma petição pela defesa do grupo de teatro A Barraca, em risco de extinção, a líder do BE disse que, “com as políticas de austeridade, o orçamento da Cultura foi reduzido para metade” e “o apoio à criação para um quarto do que era antes”: “Aquilo com que financiamos a criação artística em todo o ano é o equivalente ao que o Estado gasta em pioneses.”
Defendeu depois que o que essa realidade põe em causa é, no fundo, a nossa identidade : “A criação é uma forma de conhecimento, uma forma de qualificação e uma forma de soberania, porque é uma forma de pensarmos sobre nós, de nos projectarmos e termos um lugar no mundo. Os cortes põem em causa a capacidade de o nosso país se pensar.”