Verdes anos, tempos de luto
"Ai minha senhora!", exclama a "criada de serviço" Ilda, moribunda, após ter sido esfaqueada pelo namorado, Júlio - haverá mais memorável final na história do cinema português que esse de Os Verdes Anos? Irá fazer em breve meio século - o filme estreou-se e foi premiado no Festival de Locarno em Agosto de 1963 - que Os Verdes Anos e, no ano seguinte, Belarmino, de Fernando Lopes, introduziram uma ruptura no cinema português de que a herança se faz ainda sentir - esse cinema nunca mais seria como dantes. Tem sido suficientemente posto em destaque que 2012 foi o ano de maior sucesso internacional de filmes portugueses, mas também o "ano zero" no total bloqueamento da produção. Não menos há a assinalar, com tristeza e dor, que este ano de sucesso foi também o do desaparecimento de dois autores que marcaram a decisiva viragem no cinema português.
Os Verdes Anos é uma ficção, mas é também um espantoso documento sobre Lisboa no início dos anos 60, com as suas avenidas cosmopolitas, como as de Roma e dos Estados Unidos da América, e uma periferia caótica e pobre em expansão, designadamente pela emigração interna, o que é o caso de Júlio.
No filme seguinte, Mudar de Vida, é Adelino que retorna de África, numa daquelas primeiras referências à guerra colonial no cinema português. Nesse, Rocha foi beber às suas memórias pessoais - no que se viria a tornar uma recorrência nele. Mudar de Vida foi feito na zona de Ovar, na aldeia do Furadouro, onde o espera Júlia. É outro espantoso documento de um tempo que cessava, no caso o das campanhas da pesca, e tem os mais admiráveis diálogos do cinema português, escrito por um futuro grande realizador, António Reis.
Júlio tinha partido do seu local de origem, Adelino regressava, mas para nenhum deles o prometido se cumpria. Moribunda, Júlia diria a Adelino: "Lembraste-me ao longe, esqueceste-me ao perto." Essa arca de impossibilidade é assinalada por uma intrigante ruptura interna ao filme: o encontro de Adelino com Albertina (Isabel de Ruth de novo) num local de nome memorável, a Capela de Nossa Senhora de Entre-as-Águas, encontro de que decorre outra partida, desta vez para o estrangeiro, emigrando.
Mudar de Vida é de 1966, a longa seguinte, A Ilha dos Amores, de 1982! É certo que em 1972 fizera uma curta, A Pousada das Chagas, uma inflexão no sentido de uma acentuada teatralidade. Germinava já esse grande projecto sobre aquele outro que para o Japão tinha partido e aí tinha ficado e morrido, Wenceslau de Moraes, projecto, de resto, constante do primeiro plano de produção do então Instituto Português de Cinema, anunciado algumas semanas antes do 25 de Abril de 1974.
Rocha viria a ter condições de privilégio, pois seria nomeado adido cultural em Tóquio, o que lhe permitiu preparar o seu filme. De novo havia o luto no seu cinema, mas desta vez historicamente enquadrado: o "luto político e nacional" pelo Ultimatum Inglês de 1890. Mas o filme é sobretudo o périplo de Moraes, o seu afastamento do país, o luto por ele e o seu progressivo e finalmente total devir japonês.
"Eu vi a luz num país perdido", o célebre verso inicial de Inscrição de Camilo Pessanha, é dito a Moraes, na parte de Macau do filme, pela própria personagem de Pessanha, "filho de uma pátria incógnita", nada casualmente interpretada mesmo por Paulo Rocha, que ao outro chama "procurador dos mortos e dos ausentes".
Magistralmente interpretado por Luís Miguel Cintra, Moraes é aquele que acabará dizendo: "Viver agora tão intimamente, ao fim destes dezassete anos de ausência, o que ao princípio me parecia exótico." E essa era também a posição de Rocha. Com o decisivo contributo, nessa parte japonesa, do director de fotografia Kôzô Okazaki (que muitos anos já fizera The Saga of Anathan de Sternberg!), os planos-sequências são de um prodígio mizoguchiano.
Mas volte-se ainda a Mudar de Vida, às águas do mar e a esse tão particular nome de Nossa Senhora de Entre-as-Águas; entre-as-águas, Ilha dos Amores, Ilha de Moraes (o documentário que Rocha fez sobre o escritor - e Moraes é anagrama de amores), como se podia acrescentar um grande projecto não realizado, uma adaptação do clássico O Naufrágio de Sepúlveda, ou ainda, de regresso a Portugal, e depois de um muito desequilibrado O Desejadoou As Montanhas da Lua, o seu último grande filme, O Rio do Ouro. Rocha foi um cineasta das águas - dos desastres e do onirismo. Esse foi o outro pólo do trajecto de quem tinha feito abrir os olhos para um Portugal oculto. Os anos não são mais verdes, mas depois de Os Verdes Anos não mais o cinema português foi o mesmo.