Se os mecenas da Casa da Música recuarem, cortes podem duplicar
O administrador demissionário Nuno Azevedo acusa o Estado de "faltar à palavra" dada e critica o "truque" da avaliação das fundações e o "populismo" dos cortes
As reacções à demissão em bloco do conselho de administração da Casa da Música, motivada pelos cortes orçamentais impostos à instituição, vêm de vários quadrantes e são unânimes no receio de que possa vir a ser posto em causa um projecto cuja relevância ninguém questiona.
O musicólogo e ex-secretário de Estado da Cultura Rui Vieira Nery acha que a questão tem uma tal "gravidade política" que deveria ser "decidida ao mais alto nível" pelo primeiro-ministro. O compositor Pedro Amaral diz que a Casa da Música e o Remix Ensemble são um veículo fundamental de exportação da cultura portuguesa e que "prescindir deles é um crime". O presidente da Associação Comercial do Porto, Rui Moreira, receia que os mecenas privados da instituição, confrontados com "o incumprimento do Governo", decidam "bater com a porta e entregar o bebé ao Estado". E o director do serviço de música da Fundação Gulbenkian, o finlandês Risto Nieminen, confessa a sua dificuldade em perceber que o Governo, para poupar um milhão de euros, esteja a pôr em risco "a única instituição moderna dedicada à música que existe em Portugal".
A administração da Fundação Casa da Música, presidida por José Manuel Dias da Fonseca - e que tem em Nuno Azevedo o único elemento com funções executivas - anunciou anteontem a sua demissão, provocada pela insistência do Governo em reduzir o financiamento público da instituição em mais 30%, uma percentagem decorrente da polémica avaliação às fundações.
Um corte que os administradores consideram ir "além do que é economicamente sustentável", e que vem contrariar as garantias que tinham sido dadas ao Conselho de Fundadores da Casa da Música pelo anterior secretário de Estado da Cultura, Francisco José Viegas, que assegurara que o corte se ficaria pelos 20%, o mesmo que foi aplicado ao Centro Cultural de Belém (CCB). Esta comparativa benevolência no corte aplicado ao CCB, consagrada numa resolução do Conselho de Ministros de Setembro passado, foi justamente um dos aspectos ontem criticados no Parlamento pelo deputado centrista João Almeida, que acusou o governo de "centralismo". Elogiando a Casa da Música, que considerou "uma referência regional, nacional e internacional", o dirigente centrista, cujo partido integra a coligação de Governo, afirmou que "não é aceitável que se ponha em causa a dimensão cultural de um povo e do país, reduzindo-a a uma mera equação matemática".
Promessa de Viegas não vale
No comunicado em que justifica a sua demissão, a administração afirma que o Estado deu a entender que a Casa da Música fora imprudente em "avançar com a execução do plano de actividades em 2012, e com a preparação do ano de 2013, apenas com base na palavra do anterior Secretário de Estado da Cultura". Um recado dirigido ao actual secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier, que veio já defender-se, argumentando que Francisco José Viegas "tomou uma série de medidas e atitudes que são respeitadas", mas que "o processo decisório sobre a Casa da Música não estava concluído".
Há pouco mais de uma semana, Barreto Xavier já reconhecera, em declarações à Lusa, a existência de "promessas efectuadas anteriormente", mas acrescentara que estas "não correspondem a efectivo procedimento de decisão compatível com um compromisso superior àquele que o Estado em termos normativos e procedimentais pode atribuir à Casa da Música". Nuno Azevedo apresenta a sua versão dos acontecimentos numa formulação menos obscura. Em entrevista ao Porto Canal, o administrador acusou ontem frontalmente o Estado de "não ter palavra" e de estar a "impor um corte que contraria o acordo estabelecido em Abril" com o antecessor de Barreto Xavier. "Estávamos disponíveis para uma quebra de 20% nos apoios", garantiu Nuno Azevedo, sublinhando que "com 30%, são grandes os riscos de incumprimento dos nossos compromissos".
Para Vieira Nery, um dos grandes perigos da situação agora criada é justamente o de que "comecem a ser cancelados" compromissos internacionais. "A Casa da Música é hoje um organismo integrado numa rede internacional de primeira grandeza, algo que deu muito trabalho a construir e que pode ser facilmente destruído", avisa.
Também Risto Nieminen testemunha o prestígio de que a Casa da Música e o seu director artístico, António Jorge Pacheco, desfrutam nos círculos internacionais da música, e defende que se trata de "uma instituição exemplar", fundamental para a "promoção internacional de compositores e executantes portugueses," e para a "educação musical das novas gerações"
Um trabalho que Nuno Azevedo não acredita que seja possível prosseguir com "um contributo do Estado tão baixo" como o que agora é imposto.
O demissionário administrador delegado da Casa da Música critica ainda o "populismo inaceitável" que ditou os cortes às fundações e vê na avaliação um mero "truque para conseguir impor um corte para além daquilo que é sustentável".
Apontando a "incoerência insuportável" com que "o Estado elogia o trabalho da Casa da Música e, ao mesmo tempo, avalia negativamente a fundação que a gere, Nuno Azevedo alerta ainda para a possibilidade de os cortes virem a ser muito mais drásticos do que os já anunciados. Os mecenas, que até agora nunca recuaram, podem seguir o exemplo do Estado e, nesse caso, salienta o administrador, o "corte de três milhões pode-se multiplicar por dois".
O Conselho de Fundadores já autorizou que o fundo de reserva constituído em 2006, quando da criação da Fundação, seja utilizado para suprir os cortes e garantir que a programação de 2012 e 2013 não será afectada. Mas, no mesmo comunicado em que lamentou o processo que levou à demissão da administração, esclarece que não pôde aprovar o Plano Estratégico 2013-2015, dada "a falta de definição do quadro financeiro expectável".
Em 2011, a Casa da Música acolheu 1640 eventos, recebeu mais de meio milhão de visitantes e gerou receitas próprias no valor de quatro milhões de euros, às quais se somam 2,69 milhões de apoios mecenáticos, angariados, no essencial, entre os seus próprios fundadores, que incluem bancos, seguradoras e os maiores grupos económicos portugueses.