Enchufada
Uma página não é suficiente. Como fazer caber nove anos de uma vida numa página? As palavras nunca me saíram tão a custo como agora, em que tento preencher esta folha com tudo aquilo que tenha sido marcante na minha vida enquanto homem, músico e cidadão desta cidade, Lisboa. Faz hoje oito dias que a Enchufada, a casa que construímos para instigar e abrigar todos os nossos sonhos, ardeu e, com ela, entre discos e demais objectos úteis para a nossa atividade diária, todo um arquivo de artefactos-afectos que nos serviam de memória física e cujo inventário dificilmente caberia numa página.
Numa tarde, em Agosto de 2003, João "Branko" Barbosa e eu reencontrámo-nos em Campo de Ourique. Ele regressado de Madrid e eu de uma temporada no Porto. Numa Lisboa praticamente deserta e com pouco que fazer, decidimos pôr mãos à obra e dar luz a um sonho apalavrado: criar uma editora. Estávamos, então, na ressaca da primeira crise na indústria discográfica. Ainda assim, tomados por uma teimosia quase infantil, decidimos que era uma boa altura para brindar o mundo com mais uma editora independente, e o primeiro disco, uma espécie de manifesto, seria criado ali mesmo naquele quarto, em apenas sete dias, tal como o mundo, segundo o primeiro testamento da Bíblia... Chamar-se-ia, à ousadia, 1-UIK Project Strategies and Survival. Para muitos, o nosso cartão de visita, para nós o nosso primeiro dia de aulas na escola das editoras, com o nosso primeiro professor, a Movieplay.
O que descrevo aqui foi bem antes de Buraka Som Sistema nos Coliseus de Lisboa e do Porto, bem antes dos palcos principais no Sudoeste e no Alive, do Festival Glastonbury, de Roskilde, de Coachela, do Fuji Rock e do mundo. Bem antes do Globo d"Ouro e do prémio da MTV. E muito antes de receber das mãos do presidente a chave da Freguesia da Buraca, no primeiro e único concerto que lá demos.
Os objectos que ocupavam as nossas estantes serviam-nos de âncoras, permitindo-nos identificar, assim como os cheiros de vinis por estrear, aquilo a que chamávamos lar. Não estavam expostos somente para nos afagarem o ego; mantínhamo-los à vista porque lhes dávamos a mesma importância inexplicável que os nossos avôs dão aos bibelôs colocados sobre os napperons nos móveis da sala. Alguns, como as edições limitadas dos primeiros vinis de Buraka e da série Hard Ass Session, com o Znobia, e ainda as últimas e únicas cópias dos primeiros CD que editámos - Paus, Macacos do Chinês, Melo D e, claro, 1-Uik Project -, guardávamo-los mesmo com aquele carinho paternal que os nossos pais dedicam aos álbuns das nossas fotografias de infância.
Para mim, para o Zumbi e para o Branko, bem como para todas as pessoas que todos os dias lhe dão vida, a Enchufada é mais do que uma editora, é um espaço de realização. Aqui nos fizemos úteis, encontrando um propósito e enfrentando o desafio que é criar e divulgar música que mais ninguém acredita ser possível existir. A Enchufada sempre foi e sempre será o nosso oásis.