O cérebro é uma máquina de Turing? E os computadores, ficarão inteligentes?
As ideias do matemático britânico Alan Turing, considerado o "pai" dos computadores, continuam a alimentar o debate na fronteira entre a informática e a biologia. Este ano comemorou-se o centenário do seu nascimento
O sul-africano Sydney Brenner, Prémio Nobel da Medicina de 2002 pelo seu trabalho sobre um minúsculo verme, sobe ao pódio. Aos 85 anos, Brenner possui uma agudez mental palpável e uma presença física que a sua curta estatura em nada diminui. É um grande senhor da genética molecular e das neurociências. Mas na sua mais recente passagem por Lisboa, neste mês, não veio falar do seu trabalho, mas da influência que o trabalho do matemático britânico Alan Turing, considerado o "pai" dos computadores, teve sobre a sua compreensão da complexidade dos sistemas biológicos.
Juntamente com uma série de oradores portugueses e estrangeiros, Brenner participou, na Fundação Gulbenkian, em Lisboa, numa homenagem a Turing, uma das maiores mentes científicas do século XX, no final do ano que assinala o centenário do seu nascimento.
"Turing escreveu três artigos que interessam à biologia", disse Brenner. "E o mais importante escreveu-o em 1936, quando tinha apenas 24 anos."
Naquele artigo fundador, Turing descrevia uma máquina computacional virtual, que hoje conhecemos como "máquina de Turing". O que é? Basicamente, é um dispositivo móvel equipado de um "visor" que percorre uma fita de papel infinita, dividida em casas que contêm os números 0 ou 1. À medida que se desloca, a máquina vai manipulando esses valores com base em instruções simples, inscritas numa "tabela" interna que possui. Assim, de cada vez que lê o número que aparece no visor, a máquina pode substituir ou apagar esse valor e a seguir deslocar o visor para a esquerda ou para a direita para executar a instrução seguinte.
Mas Turing não se ficou por aí: no mesmo artigo, demonstrou a existência de uma "máquina de Turing universal" - uma máquina capaz de fazer tudo o que qualquer máquina de Turing faz desde que lhe seja fornecida uma descrição interna da máquina a imitar.
Tudo isto poderá parecer desprovido de interesse prático, mas nada está mais longe da realidade. É que essa máquina universal representa nem mais nem menos do que a primeira descrição conceptual dos computadores digitais tal como os conhecemos hoje - e que, para além de fazer multiplicações ou extrair raízes quadradas como qualquer calculadora que se preze, nos permite ainda escrever textos, reproduzir sons e imagens ou encontrar respostas a perguntas. O conceito de software e o de máquina programável (por oposição à de máquina dedicada, cujo hardware foi construído para desempenhar uma tarefa específica) já estavam presentes no artigo fundador de Turing, concordam os especialistas.
Mas por que é que um trabalho matemático tão abstracto impressionou um biólogo empedernido como Brenner? Por uma razão muito simples: porque, segundo ele, as máquinas de Turing universais já foram criadas pela natureza - são os sistemas biológicos e, nomeadamente, as células vivas. "Nós somos máquinas de Turing e as nossas tabelas internas foram construídas pela evolução através de um processo de ensaio e erro."
As ideias de Turing foram desenvolvidas nos anos 1940 pelo matemático - e "pai" do primeiro computador digital real - e húngaro-americano John von Neumann, explicou ainda Brenner. Von Neumann imaginou um "construtor universal": uma máquina que não só era capaz de construir outra igual a si própria a partir da sua própria descrição mas que, a seguir, também conseguiria inserir essa descrição na "máquina-filha". Ora, não escapa a ninguém que, apesar de ser o fruto de um raciocínio totalmente matemático, este processo de auto-replicação sucessiva tem muito que ver com a divisão e proliferação das células vivas. A descoberta da estrutura do ADN por Francis Crick e James Watson revelaria aliás essa semelhança na década seguinte.
O caso do cérebro
"O ADN é a fita que contém a descrição do nosso organismo e a maquinaria molecular [das células] é o construtor universal", resume Brenner. A vida é "uma combinação de uma forma de física de baixas energias (chamada química) e de computação".
De todos os sistemas de células vivas, o mais complexo é sem dúvida o cérebro humano, com os seus milhares de milhões de neurónios a comunicarem entre si química e electricamente para controlar, em paralelo, as milhentas coisas que estão sempre a acontecer no nosso organismo - dos mais ínfimos reflexos até ao desempenho das nossas funções cognitivas mais sofisticadas. "O cérebro é uma máquina computacional porque tem de tomar decisões", afirmou Brenner. E quem diz decisões, diz cálculos. Mesmo um cérebro tão diminuto como o do verme Caenorhabditis elegans, que Brenner estudou ao longo de anos e que apenas possui 300 neurónios, precisa de tomar decisões complexas, como por exemplo determinar, a cada instante, se há-de nadar nesta ou naquela direcção à procura de alimentos ou para fugir de potenciais ameaças.
Para Brenner, o cérebro humano é obviamente uma máquina de Turing universal. O que o biólogo não acredita é que os computadores de silício possam um dia tornar-se inteligentes como um cérebro. "Mais vale combinar inteligência humana e estupidez artificial do que o contrário", ironizou, porque "os computadores são muito obedientes, mas muito estúpidos". No fundo, também não está particularmente interessado nessa questão; o que acha interessante perceber são os sistemas biológicos, e é nesse aspecto que reconhece a importância de Turing.
E a inteligência artificial?
Luís Moniz Pereira, director do Centro de Inteligência Artificial da Universidade Nova de Lisboa, também acha que o cérebro é uma máquina de Turing universal - mas não partilha de todo o ponto de vista de Brenner sobre a imutável "estupidez" dos computadores. Em conversa com o PÚBLICO no fim da jornada na Gulbenkian, na qual também participou, Moniz Pereira mostrou-se convicto de que um dia as máquinas serão inteligentes. "As máquinas (robôs ou não)", explica, "serão cada vez mais autónomas, rápidas na decisão, funcionando em grupo e com capacidade de lidar com emergências e urgências, actuando por exemplo numa lua de um planeta distante, no fundo do mar, num teatro de guerra, nas guerras de softwares financeiros, em emergências civis, no apoio a pessoas idosas e crianças ou mesmo como coadjuvantes pessoais - o que poderá incluir a intimidade sexual."
Quanto a empreendimentos como o Projecto do Cérebro Humano (liderado por Henry Markram, da Escola Politécnica Federal de Lausana, na Suíça), que visa construir, em silício, um modelo do cérebro anatomicamente correcto (ver "À procura da receita informática para construir um cérebro humano de silício", PÚBLICO de 14.05.2011), Moniz Pereira não acredita que essa máquina possa vir a funcionar como um cérebro. "Servirá para modelizar os níveis mais baixos, inconscientes e automáticos do cérebro e será útil para o diagnóstico das doenças. Mas, justamente porque o cérebro é uma máquina de Turing universal (e portanto é autoprogramável), o software é diferente em cada pessoa. E a reconstrução anatómica do cérebro não nos diz como carregar diferentes softwares."
Moniz Pereira pensa porém que, tal como o cérebro desenvolveu inteligência, o mesmo pode acontecer com os computadores. "Basta dar-lhes os ingredientes e o contexto necessário à evolução, pois a evolução no nosso mundo requer a inteligência, a cooperação, a lógica, o livre-arbítrio - e é por isso que essas facetas foram seleccionadas. Na prática, os humanos e suas máquinas evoluirão em conjunto, simbioticamente." Mas as máquinas vão mesmo conseguir pensar como nós? "Não vejo por que não", responde. "Se não as conseguirmos pôr a pensar, será porque nós próprios não sabemos o que é pensar e construir algo que pensa."
Quase oito décadas após a publicação daquele artigo fundamental, as ideias de Turing continuam, portanto, a estar totalmente na ordem do dia. Bem como, embora por razões desta vez iníquas, a sua condenação em tribunal, em 1952, quando admitiu ter tido relações homossexuais (ser gay só se tornaria legal no Reino Unido nos anos 1960).
Este tema também foi abordado na Gulbenkian, pelo escritor norte-americano David Leavitt, autor do livro The Man Who Knew Too Much: Alan Turing and the Invention of the Computer. Leavitt explicou em particular que Turing foi a seguir assediado incansavelmente pelos serviços secretos britânicos, receosos de que pudesse tornar-se um "traidor homossexual" ao ser seduzido por algum espião soviético, passando-se para o "outro lado" e revelando segredos de Estado.
O receio surgia do facto de Turing, numa outra das facetas do seu génio matemático, ter trabalhado, durante a Segunda Guerra Mundial, no centro supersecreto de Bletchley Park, perto de Londres, na decifração dos códigos secretos das célebres máquinas Enigma, que os nazis utilizavam para encriptar as suas telecomunicações. Grande parte deste trabalho - consensualmente tido como decisivo para encurtar a guerra - é, ainda hoje, considerado top secret pelas autoridades britânicas.
A história pessoal de Turing é trágica. A seguir à sentença de crime homossexual, Turing teve de se submeter a uma castração química por hormonas femininas para escapar à cadeia. E morreu em 1954, tendo-se muito provavelmente suicidado na sequência dos vexames e perseguições que sofreu nos últimos dois anos da sua vida.
Turing ainda não foi formalmente perdoado pelo seu "crime" pelo Governo britânico, como alguns esperavam que acontecesse neste ano da sua comemoração. Em 2009, o então primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, pediu perdão póstumo a Turing pela forma discriminatória como o seu país o tinha tratado. Mas, ironicamente, no início de 2012, o Governo conservador de David Cameron acabou por lhe recusar o perdão oficial, argumentando que a homossexualidade era de facto um crime e que a condenação de Turing foi justa à luz da lei da época.
No episódio mais recente desta saga, há cerca de duas semanas, o físico Stephen Hawking e várias outras figuras proeminentes reiteraram o mesmo pedido numa carta aberta a Cameron, instando o Governo a reconsiderar. Mesmo que o pedido seja atendido, o seu efeito prático far-se-á sentir mais na reputação do direito britânico do que na do matemático, pois a história há muito que fez o seu veredicto. A memória de Turing não precisa de qualquer reabilitação.