As pinturas da gruta Chauvet são as mais antigas do mundo
Uma datação que parece mesmo à prova de bala confirma que o bestiário que cobre as paredes desta gruta do Sul de França foi pintado há 30 mil anos. Vai ser preciso reavaliar a cronologia da evolução cognitiva humana. Tornámo-nos intelectualmente sofisticados há muito mais tempo do que pensávamos
"Eles vieram cá!", exclamou Éliette Brunel, naquela noite do último domingo antes do Natal de 1994, quando a lâmpada frontal do seu capacete iluminou, numa rocha pendente do tecto da enorme gruta que Jean-Marie Chauvet, Christian Hillaire e ela tinham acabado de descobrir, um pequeno mamute pintado com ocre vermelho. É assim que, no seu mini-site dedicado à gruta Chauvet, o Ministério da Cultura francês relata a extraordinária aventura vivida há quase duas décadas por estes três espeleólogos amadores franceses.
Tudo tinha começado, naquele fim de tarde, com Chauvet a arrastar os seus amigos para uma pequena expedição no desfiladeiro do rio Ardèche, perto da localidade de Vallon-Pont d"Arc. É que, ao explorar no local uma pequena gruta, já conhecida, ele tinha notado uma ligeira corrente de ar a sair de um pequeno orifício e queria saber se havia qualquer coisa lá escondida.
Os três amigos começam então a escavar a terra e descobrem uma passagem, na qual penetram e que vai dar a uma cavidade mergulhada no escuro. Lá fora já é noite, mas querem ver o que encontraram antes de se irem embora e vão aos carros buscar o material necessário. Munidos de lâmpadas e escadas de cordas, percorrem várias grandes salas com formações geológicas de uma beleza inesperada; há ossos de animais no chão; estão maravilhados. Mas é no caminho do regresso ao exterior que vão ter a maior surpresa de todas, ao verem surgir da escuridão centenas de gravuras e pinturas feitas nas paredes da gruta.
O trio percebe a importância do que acabou de vislumbrar e, na véspera de Natal, decide proteger a entrada da gruta para evitar que incursões inoportunas possam pôr em risco a integridade das pinturas (faz pensar na cena do filme Roma, de Federico Fellini, em que maravilhosos frescos romanos descobertos durante as obras do Metro desaparecem, debaixo do olhar horrorizado dos observadores, corroídos pelo contacto com o ar poluído do exterior).
Em Pont d"Arc, tudo se processa muito depressa e, a 29 de Dezembro, uma primeira expedição, dirigida por Jean Clottes, eminente especialista de grutas decoradas, é organizada. A protecção dos achados também não é deixada ao acaso e, ao contrário do que aconteceu com grutas como Lascaux em França ou Altamira em Espanha, a gruta Chauvet nunca será aberta ao público.
Uma outra surpresa aguardava entretanto os cientistas: quando fazem a datação com carbono 14 das obras de arte pré-históricas da gruta, descobrem que elas têm... entre 30 e 32 mil anos (a título comparativo, as pinturas de Altamira têm 15 mil anos e as de Lascaux 18 mil). Outros indícios confirmam a antiguidade, como por exemplo as pinturas - e os restos de dezenas de crânios - de uma espécie de urso vegetariano extinto há... 28 mil anos.
Nos últimos tempos, tem contudo havido algum debate em torno das datações, com alguns especialistas a defenderem que as pinturas de Chauvet, pelo seu estilo, só podem ser mais recentes. Mas agora, num artigo hoje publicado na revista norte-americana Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), Benjamin Sadier, da Universidade de Sabóia, e colegas anunciam resultados obtidos com métodos totalmente diferentes e independentes. E concluem que, devido a vários colapsos da falésia, a única entrada da gruta Chauvet (diferente do pequeno acesso aberto em 1994) ficou completamente vedada há mais de 20 mil anos, tendo permanecido intacta até ao final do século XX. E que, portanto, o seu conteúdo só pode ser anterior a essa altura.
Datação cósmica
É hoje indiscutível, com base em estudos geomorfológicos, que a gruta nunca teve mais do que uma entrada na altura em que foi habitada, lembram os cientistas franceses. Qualquer outra hipótese, escrevem, "exigiria quer a ascensão por um acesso de 80 metros na vertical, quer o acesso pelo outro lado do planalto, com dois quilómetros de caminhada subterrânea através de sistemas [de formações geológicas] sem ligação ao sistema da gruta Chauvet".
Uma fase do seu trabalho consistiu em mapear em 3D, graças a um LiDAR (um "radar óptico"), a superfície da falésia de rocha calcária, na zona logo acima da entrada original. Isso permitiu deduzirem que vários monólitos se terão desprendido dessa face vertical, originando a acumulação de rochas e os sinais de impacto hoje observados nessa área.
A seguir, efectuaram uma datação pelo cloro 36, um isótopo do cloro que permite estimar durante quanto tempo uma superfície rochosa (neste caso, a da face da falésia que se desmoronou aos bocados) esteve exposta aos raios cósmicos vindos do espaço. Puderam assim determinar que o primeiro colapso se deu há perto de 29 mil anos - e que o último, há uns 21 mil anos, vedou definitivamente a gruta, "o que proibiu o acesso à gruta há pelo menos 21 mil anos". O estudo, em "notável concordância" com as datações por carbono 14 da ocupação animal e humana da gruta, "confirma que as pinturas da gruta Chauvet são as mais antigas e mais elaboradas jamais descobertas".
Para estes cientistas, os resultados agora obtidos têm duas importantes implicações. Por um lado, "põem seriamente em causa a datação da arte paleolítica com base em critérios estilísticos". Por outro, constituem "um desafio à nossa compreensão actual da evolução cognitiva humana." Claramente, a humanidade tornou-se intelectualmente muito mais sofisticada muito mais cedo do que pensávamos.
"Pessoalmente, nunca duvidei das datações radiocarbónicas das pinturas de Chauvet", disse ao PÚBLICO o arqueólogo português António Martinho Baptista, coordenador do Parque Arqueológico e Museu do Côa. "Sempre fui adepto de conjugar as datações estilísticas com outros aspectos. Para mim, este resultado não é uma surpresa."
Nos primeiros textos que escreveu sobre Foz Côa, em meados dos anos 1995, António Martinho Baptista estimava que a idade das gravuras rupestres ali descobertas rondava os 20 mil anos. Mas a seguir, foram métodos indirectos que permitiram afinar a datação inicial. E exemplifica: "A Rocha 1 do Fariseu era o único painel ao ar livre tapado por terra e outros sedimentos arqueológicos desde o Paleolítico Superior e o que nós datámos foram os objectos contidos nesses sedimentos: pedras aquecidas em lareiras (por termoluminescência) e restos de fauna (por carbono 14). Podemos dizer com 100 por cento de fiabilidade que esse painel foi feito há pelo menos 18 mil anos." Simplesmente, porque o material arqueológico que o cobre, e que é necessariamente mais recente, permaneceu intacto todo este tempo e tem 18 mil anos.
A descoberta da idade das pinturas de Chauvet marcou, segundo António Martinho Baptista, "uma revolução" em termos de datação estilística, mostrando que pinturas com a "qualidade estética esplendorosa" destas podiam ser bastante mais antigas do que se pensava. Também no Vale do Côa, explica ainda, "conseguimos fazer recuar a datação ainda mais e sabemos hoje que as gravuras mais antigas têm entre 25 a 30 mil anos. Foi a gruta Chauvet que nos ensinou isso; que em arqueologia temos de usar todos os métodos possíveis."
Tal como a gruta Chauvet, as gravuras de Foz Côa foram descobertas em Dezembro de 1994, salienta. Tal como Chauvet, Foz Côa representa "um novo paradigma" na arte paleolítica. "Gosto de dizer que Foz Côa é a arte ao ar livre por oposição à artes das grutas, a arte da luz por oposição à arte das trevas."