Abriu-se uma caixa de madeira e lá dentro revelou-se a sepultura de um cão com 7600 anos
O ADN do animal já foi extraído e agora vai tentar desvendar-se se a domesticação do cão teve origem só no Médio Oriente
O Piloto, nome que inventaram informalmente para ele, encontra-se dentro de uma caixa de madeira, guardado como uma relíquia no Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa. Ontem, a equipa de cientistas que o descobriu há um ano perto do estuário do Sado, e o tem estudado desde então, apresentou-o publicamente pela primeira vez: os parafusos da caixa são desapertados com a ajuda de um berbequim e o que surge à vista de todos é o esqueleto de um cão, no meio de terra escura, com conchas de berbigão aqui e ali, preservando assim a sua sepultura.
Apesar do nome banal, este não é um cão qualquer. Datações por radiocarbono de amostras das costelas, realizadas na Universidade de Oxford, Reino Unido, confirmaram recentemente que a sepultura do Piloto tinha 7600 anos - o que a torna a mais antiga do Sul da Europa, desde o Báltico até Portugal, sublinha Pablo Arias, da Universidade de Cantábria, que dirigiu, com Mariana Diniz, do Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa, as escavações que permitiram a descoberta.
O cão foi encontrado num amontoado de conchas na zona de Alcácer do Sal - no concheiro de Poças de São Bento. A sua descoberta resulta do projecto Sado-Meso, que se centra nos concheiros naquele estuário. Estes amontoados de conchas, deixados pelos últimos caçadores-recolectores, no Mesolítico, quando já estavam também a emergir as sociedades agropastoris, são restos da alimentação que retiravam do Sado. Além de berbigão, comiam amêijoas, douradas ou robalos.
Existe um cão mais antigo do que este do Sado: foi encontrado nos concheiros de Muge, no concelho de Salvaterra de Magos, está exposto no Museu Geológico em Lisboa e a datação por radiocarbono concluiu que tem 8000 anos. A diferença é que o cão do Sado foi descoberto claramente numa sepultura, que foi documentada numa escavação, enquanto para o cão de Muge, encontrado no século XIX, já não se pode dizer o mesmo, pois não existe esse registo.
Mais: agora não só se fez o registo arqueológico da sepultura do cão do Sado, como o bloco de terra onde ele se encontrava foi cortado e levado para o museu. Ao público, só deverá ser exposto em 2013, por altura de uma conferência científica sobre as escavações do projecto Sado-Meso.
"O cão estava seguramente contido [num buraco pouco espaçoso]. Os membros estavam recolhidos e flectidos. Estava, de facto, numa posição artificial que sugere um ritual de enterramento", diz Mariana Diniz.
Os caçadores-recolectores mesolíticos da Península Ibérica faziam então a inumação de cães, uma prática conhecida no Norte da Europa, mas que até agora não estava documentada durante trabalhos de escavação no Sul do continente. "A descoberta desta sepultura de cão foi uma surpresa agradável. Era uma prática ritual frequente na Suécia, na Finlândia, mas não se conhecia com segurança no Sul do continente europeu", acrescenta Pablo Arias. "A confirmação de que estamos perante um cão mesolítico é importante para compreender o universo mental destes grupos [de caçadores-recolectores]", diz ainda o arqueólogo espanhol. "Havia afecto das pessoas em relação a estes animais."
Para aquela altura, além do cão, domesticado a partir do lobo, não existem provas da domesticação de outros animais, sobretudo para comer, como as cabras e ovelhas, explica, por sua vez, o zoo-arqueólogo Simon Davis, do Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico (Igespar), também da equipa. "O único animal domesticado naquela época, no Médio Oriente e em Portugal, era o cão."
Espera-se agora que o esqueleto encontrado no Sado permita esclarecer alguns mistérios sobre a domesticação deste animal - nomeadamente recorrendo ao seu ADN, que já foi extraído com sucesso, e comparando-o com ADN de lobos, por exemplo.
"Uma das questões sobre os cães é se foram todos levados do Médio Oriente, onde temos as primeiras provas da domesticação destes animais, ou se houve domesticação independente aqui na Península Ibérica", diz Simon Davis.
Mas o ADN do cão do Sado, que teria nove a 12 meses de idade e cerca de 20 quilos, deverá permitir saber mais: de que cor era o pêlo e qual o sexo do animal. Então saberemos se o Piloto é mesmo "um" Piloto.