Galopim de Carvalho escreve sobre o Alentejo e as suas comidas
A mulher de António Galopim de Carvalho alcunhou-o de O Papilas. À alcunha subjaz uma razão: "Sou tão comilão que a minha mulher chama-me O Papilas. Diz que quando vou para a mesa só levo as papilas." As gustativas, que saboreiam o salgado, doce, amargo e ácido. Mais do que isso, o geólogo, que ficou conhecido pela defesa das pegadas de dinossauros e demais património geológico e paleontológico, não se quis resumir ao papel de cozinheiro de fim-de-semana nem de "gourmet". Quer partilhar as receitas que inventou ou adaptou. O livro onde revela o receituário pessoal e conta histórias de comidas e geologia - "Com Poejos e Outras Ervas" - é lançado hoje à tarde em Évora, a cidade onde nasceu há 70 anos.Bifes de tiranossauro grelhados ou ovos de "Maiasaura" estrelados é o que encontraremos no livro? Nada disso, porque estes bichos já cá não andam há 65 milhões de anos. Mas o geólogo, que é conhecido como o pai ou avô dos dinossauros, reuniu a veia para os cozinhados, um dos seus passatempos, à faceta mais recente de escritor (já publicou histórias ficcionadas em "Os Homens não Tapam as Orelhas" ou "O Cheiro da Madeira", por exemplo). Sem que a voz do geólogo ficasse calada, nem os dinossauros esquecidos.Por isso, três partes estruturam este livro em que a comida e o Alentejo são o pano de fundo: "O Alentejo e os alentejanos", onde não esquece a geologia da região, "Um punhado de histórias com saberes e sabores à mistura", onde relata memórias em forma de crónica, e "A cozinha herdada, transformada ou nascida em nossas casas", onde dá as receitas pessoais aos leitores. As 25 crónicas são um pouco, mas não muito, ficcionadas. "São histórias reais de coisas vividas por mim, que têm uma relação com a gastronomia e com saberes que aprendi ao longo da vida. Por exemplo, como a minha avó fazia o caldo de farinha, pois dantes não havia muito leite." Só que os irresistíveis dinossauros, que o tornaram popular em todo o país depois de assumir a direcção do Museu Nacional de História Natural de Lisboa, em 1992, surgem aqui e acolá. Ora numa crónica em que fala de ovos e lá aparecem os da Lourinhã, com embriões de dinossauros carnívoros, uma raridade mundial, ora num capítulo dedicado às aves em que lembra que entre estas e os dinossauros não há praticamente diferenças. Serve tal afirmação para dizer que as aves, como o frango que nosso prato, são os descendentes dos dinossauros. Com os mesmos laivos de divulgação científica, o geólogo conta que há 380 milhões de anos o Alentejo - e a Península e não só - começou a elevar-se do fundo do mar numa enorme cadeia montanhosa, que depois se foi desgastando e deu a actual planura. "Quando esta cadeia atingiu a sua maior imponência, há uns 300 milhões de anos, não havia Península Ibérica, nem sequer Europa. O que havia era um único e 'recém-formado' supercontinente que reunia, colados uns aos outros, antigos continentes (...)", conta no livro.No final é que nos delicia com cerca de 150 receitas que inventou ou nas quais introduziu modificações, com muito pão e ervinhas. "São todas à base da maneira de comer do Alentejo. Muitas sopas, migas..." Lá estão as migas de bacalhau com poejos, a açorda de hortelã, as sopas da panela, as sopas de beldroegas com queijo e ovos ou ensopado de borrego. Tudo à Galopim de Carvalho. "Todas elas são receitas pessoais. As receitas de pratos tradicionais estão noutros livros."As receitas de Galopim de Carvalho começam por ter uma existência virtual. "Sabe o que é a cozinha virtual? Estou num sítio qualquer e dou por mim a juntar os ingredientes. Às vezes fico com uma sugestão porque passei por um mercado ou jantei num restaurante e construo um prato e escrevo. Invento uma receita e quando vem um fim-de-semana ou umas férias, vou experimentá-la. Se resulta bem, passo-a a definitivo. Então passa de virtual a real."O poejo é a sua erva preferida. Define-a como uma menta muito aromática. "Ponho poejos em tudo. Chego a pôr poejos secos em cima do queijo fresco. São um perfume que delicia a alma". Ainda há poucos dias saboreou os ditos numa alentejaníssima sopa de cação. Mas as beldroegas não lhe ficam atrás. Como revela no livro, os familiares e amigos conhecem-lhe o gosto muito especial por aquelas ervinhas carnudas e aciduladas que crescem espontaneamente nas hortas e já mataram a fome a muita gente.Claro está que é fácil perceber porque elegeu o poejo para nome do livro: além do gosto pessoal, diz que é "o mais alentejano dos cheiros". "Mas o alentejano põe ervas em tudo. Poejos, tomilho, coentros, hortelã, orégãos, segurelha... Ai, tanta erva!" Ao uso de tantas ervas não é alheia a pobreza. "A cozinha do Alentejo é muito boa", diz. Palavra nada subjectiva de alentejano. "É talvez mais perfumada, usa muita imaginação. É uma comida fruto de uma procura de quem quer disfarçar a pobreza."Quem o comece pessoalmente, sabe que não há camisa que resista às nódoas se não prender um pano ao colarinho. "Quando me esquecia de pôr o pano, a minha mulher olhava para a gravata e dizia: já está! Agora peço desculpa, mas ponho sempre um guardanapo."