Prémio Nobel da Química para "caixa de ferramentas" celular de reparação do ADN
Sem a “caixa de ferramentas” que as células possuem para corrigir os erros que vão surgindo no seu ADN, não haveria vida na Terra. Os laureados deste ano fizeram trabalhos pioneiros na área da reparação do genoma.
Nos anos 1960, pouco mais de uma década depois da descoberta da estrutura do ADN, pensava-se que esta longa molécula, albergada no núcleo de cada uma das células do nosso corpo, era muito estável. Nas divisões celulares, por exemplo, copiava-se a si própria sem falhas. E embora a evolução das espécies exigisse que houvesse algumas mutações pelo caminho, considerava-se que o seu número era bastante limitado de uma geração para a seguinte.
Hoje, sabe-se que a realidade é diametralmente oposta a esta visão das coisas: não só o nosso genoma está sempre a ser agredido e danificado pelos raios ultravioletas (UV) do Sol e por uma pletora de substâncias tóxicas presentes no ambiente, mas o ADN também é, ele próprio, intrinsecamente instável.
Em particular, durante os vários milhões de divisões celulares que decorrem diariamente no nosso corpo, a cópia das “letras” do ADN é um processo sujeito a erros “ortográficos”. E para além disso, milhares de alterações espontâneas do genoma acontecem todos os dias nas nossas células.
“O nosso material genético não se desintegra num total caos químico porque há uma bateria de sistemas moleculares que está constantemente a monitorizar e reparar o ADN”, lê-se num comunicado do comité do Nobel. “O Prémio Nobel da Química 2015 recompensa três cientistas cujos trabalhos pioneiros permitiram mapear em pormenor o funcionamento de alguns destes sistemas ao nível molecular”.
As perguntas que surgiram na cabeça de Tomas Lindahl em finais dos anos 1960 são um bom ponto de partida para relatar estes três percursos científicos paralelos. Durante o pós-doutoramento na Universidade de Princeton (EUA), Lindahl observara que as moléculas de ARN (semelhantes ao ADN) se degradavam facilmente ao serem aquecidas, explica noutro documento o comité do Nobel. Mas então, que dizer do ADN? Seria possível perdurar toda uma vida sem se deteriorar?
Uns anos mais tarde, já a trabalhar no Instituto Karolinska em Estocolmo, Lindahl mostrou que o ADN também se degradava com o tempo, embora mais lentamente que o ARN. A partir daí, tornou-se claro para ele que a nossa própria existência era a prova provada de que as células possuíam mecanismos para preservar o genoma do tal “caos químico” incompatível com a vida.
Utilizando bactérias, Lindahl identificou uma enzima (uma proteína) que removia as moléculas de citosina – uma das quatro bases (ou “letras”) que se encadeiam no ADN – quando elas estavam danificadas. Em 1974, publicou a descoberta deste mecanismo, dito de “reparação por excisão de bases”.
Ao longo de 35 anos, Lindahl descobriu e estudou muitas das proteínas dessa “caixa de ferramentas” celular de reparação do ADN, lê-se ainda no mesmo documento. “Peça a peça, Lindahl construiu uma imagem molecular do funcionamento da reparação por excisão de bases." E em 1996, conseguiu reproduzir, in vitro, o processo correspondente nas células humanas.
Técnico de laboratório
Entretanto, no início dos anos 1970 na Turquia, Aziz Sancar, um jovem médico, decidiu estudar bioquímica para perceber por que é que as bactérias expostas a doses letais de raios UV recuperavam a saúde, como por magia, quando eram a seguir expostas a luz azul.
Sancar obteve o seu primeiro resultado – a clonagem do gene que comanda o fabrico da fotoliase, a enzima sensível à luz que repara os estragos causados pelos UV – durante o doutoramento numa universidade norte-americana. O trabalho valeu-lhe uma tese, mas quando quis continuar a fazer investigação, defrontou-se com recusas de várias universidades.
Sancar arranjou finalmente emprego como técnico de laboratório na Universidade de Yale – onde havia cientistas a estudar um outro mecanismo celular de reparação (não sensível à luz) dos danos no ADN causado pelos UV.
Participando nessas pesquisas, conseguiu então mostrar, em experiências in vitro, que existia um trio de enzimas capaz de identificar esses estragos feitos pelos UV e de “cortar” a cadeia de ADN que continha o defeito em causa. Tinha assim descoberto um outro mecanismo celular de preservação do ADN, o da “reparação por excisão de nucleótidos” (os nucleótidos são formados pelas bases do ADN acopladas a outras moléculas).
Quando Sancar publicou os seus resultados, em 1983, foi logo convidado a ensinar na Universidade da Carolina do Norte. Continuou a estudar as diversas etapas daquele processo celular e também mostrou que ele existe nas células humanas.
O terceiro laureado, Paul Modrich, descobriu ainda outro mecanismo de reparação do ADN, que intervém para corrigir os erros de cópia do ADN durante a divisão celular.
De cada vez que uma célula se divide em duas células-filhas, tem de criar duas cópias, em princípio idênticas, do seu ADN. Nesse processo, as bases (as “letras” A, T, C e G) das duas novas moléculas em formação não se emparelham ao acaso: um A liga-se sempre a um T e um C a um G. Ou quase sempre: um dos defeitos que podem surgir durante a cópia são precisamente os emparelhamentos incorrectos.
Foi esse mecanismo de “reparação dos desemparelhamentos de bases” que Paul Modrich desvendou, criando para isso, no laboratório, um vírus cujo ADN continha uma série de desemparelhamentos. Também ele descreveu e estudou as enzimas envolvidas no processo, recriando-o in vitro – um trabalho que foi publicado em 1989.
Mas ao contrário dos outros dois mecanismos, ainda não foi esclarecido o funcionamento deste tipo de reparação do ADN no ser humano.
O que acontece quando estes mecanismos não funcionam? O risco de cancro aumenta. Por exemplo, os defeitos congénitos da reparação por excisão de nucleótidos provocam uma doença, a xeroderma pigmentosa, cujas vítimas desenvolvem cancros da pele quando se expõem à luz solar, salienta ainda o já referido documento. E os defeitos da reparação do desemparelhamento de bases fazem aumentar o risco de cancro do cólon hereditário.
“O trabalho dos laureados permitiu perceber a um nível fundamental o funcionamento das células”, conclui o comité do Nobel, “e esse conhecimento poderá ser utilizado para desenvolver novos tratamentos contra o cancro.”