Pode estar descansado: não vamos ser devorados por um buraco negro
Três cientistas do Instituto Superior Técnico de Lisboa quiseram ver se todos os astros acabam um dia em buracos negros, objectos tão densos e maciços que atraem tudo o que está à volta. Para tal, fizeram cálculos num supercomputador chamado Baltasar Sete-Sóis, onde a ciência também se encontrou com a literatura.
A pergunta de partida era: poderiam estrelas como o Sol, planetas como a Terra ou até astros mais pequenos como asteróides transformar-se em buracos negros, estivéssemos nós dispostos a esperar muito pacientemente milhões e milhões de anos até surgir essa evolução? A resposta é que o nosso Sol e a nossa Terra não se irão transformar nesses monstros supermaciços que sugam tudo o que está em redor – conclui agora uma equipa do Centro Multidisciplinar de Astrofísica (Centra) do Instituto Superior Técnico de Lisboa, depois de uma série de cálculos complexos no supercomputador Baltasar Sete-Sóis, nome inspirado em Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, personagem de José Saramago em Memorial do Convento.
À primeira vista, a interrogação que serviu de base ao trabalho até pode parecer desconcertante, no sentido em que a opinião unânime da comunidade científica já era a de que apenas as estrelas muito maciças – com pelo menos três vezes a massa do nosso Sol – se transformariam em buracos negros no final da sua vida. Assim sendo, só estas estrelas poderiam originar astros muito densos, com uma força gravítica tremenda que não deixaria escapar a matéria nem a luz, uma vez lá caídas.
Quando tivessem consumido todo o combustível em reacções de fusão nuclear dos seus átomos, o que até aí sustinha estas estrelas gigantes, a gravidade exercida pela matéria acabaria por vencer outras forças de resistência e elas contrair-se-iam. Ou seja, a matéria colapsaria sobre si própria e estas estrelas tornar-se-iam extremamente compactas. Como a observação directa destes astros é impossível – são como um buraco negro no espaço –, a sua existência tem sido detectada através dos efeitos que causam na sua vizinhança, como devoradores de matéria e energia que são.
“Ao fim de 50 anos de estudos, acreditávamos que a Terra, o Sol e outros astros não colapsam porque existe uma pressão à superfície e dentro dos próprios astros, que é responsável pelo facto de não nos enfiarmos pelo planeta adentro”, explica ao PÚBLICO Vítor Cardoso, astrofísico do Centra. “No Sol, essa pressão surge maioritariamente da radiação que é gerada pela fusão nuclear que ocorre lá dentro. Mas quando uma estrela muito maior do que o Sol queimava todo combustível, acreditávamos que não ia aguentar o próprio peso e caía sobre si própria. Pensávamos que a única maneira de formar um buraco negro seria ter muita matéria e deixá-la cair sobre si mesma”, acrescenta o investigador português.
Mas em 2011, instalou-se a dúvida sobre esta unanimidade: os investigadores polacos Piotr Bizon e Andrzej Rostworowski, da Universidade Jaguelónica, em Cracóvia, pegaram nas equações de Einstein na sua teoria da relatividade geral (de 1915) e procuraram resolvê-las, para encontrar soluções que descrevessem matematicamente os buracos negros, o que exigiu o recurso a um supercomputador.
“As equações da relatividade são tremendamente complicadas de resolver e têm muitas soluções – tal como a ‘fórmula’ da biologia dá origem a muitos seres vivos diferentes”, explica Vítor Cardoso. “Só muito recentemente, a começar em 2005 ou 2006, é que conseguimos perceber como conseguir pôr os computadores a resolver as equações, em situações muito complexas.”
O artigo que os dois investigadores polacos publicaram, na revista Physical Review Letters, concluía que mesmo uma pequena quantidade de matéria acabaria transformada em buraco negro, se estivesse confinada num espaço. Por exemplo, se estivesse literalmente circunscrita numa caixa hermética.
“Mostraram que se conseguíssemos manter a matéria fechada numa caixa, de onde não pudesse sair, se esperássemos e olhássemos lá para dentro, iríamos ver um buraco negro. O tempo que teríamos de esperar dependeria da quantidade de matéria que se pusesse lá no início”, esclarece Vítor Cardoso. “Isso pode não parecer muito surpreendente, mas seria uma mudança completa de paradigma: não pensávamos que bastaria ter uma pequena quantidade de matéria para dar um buraco negro, desde que conseguisse estar fechada num certo sítio.”
A confirmar-se, esta mudança de paradigma levantaria novos problemas teóricos: “Seria de esperar que começassem a formar-se buracos negros em muitas circunstâncias”, refere o investigador.
Antes de mais, teriam logo surgido muitos buracos negros no início do Universo, nascido há 13.800 milhões de anos no Big Bang: “Havia muita matéria concentrada num sítio fechado, e pequeno naquela altura, que era o próprio Universo. Se a formação de buracos negros aconteceu no início do Universo, eles teriam sobrevivido e deveríamos ver esses buracos negros primordiais. Mas não os vemos.”
Suceder-se-iam outros problemas teóricos, mesmo na realidade com que contactamos todos os dias. Um exemplo: “Num planeta como a Terra, o mar mantém-se à superfície e não pode sair daí. Mas, nos resultados dos polacos, se estivéssemos dispostos a esperar muito tempo, mais cedo ou mais tarde veríamos a formação de um buraco negro: o mar daria, dentro dele, origem a um buraco negro. É um resultado estranho.”
A estranheza continuaria. Qualquer coisa de onde a matéria não pudesse sair acabaria por formar um buraco negro, como a crosta da Terra.
Ao longo dos 13.800 milhões de anos de evolução do Universo, a realidade já se encarregou de mostrar que estes casos drásticos de formação de buracos negros não devem acontecer. “Mas, infelizmente, não temos acesso ao início do Universo. A experiência do dia-a-dia é valiosa, mas tem limites. Se confiarmos muito nela, o Universo sempre foi como é agora. Não o veríamos a evoluir. O Sol esteve sempre ali, a Lua esteve sempre ali.”
Dois meses de cálculos
Por isso, Vítor Cardoso, juntamente com o japonês Hirotada Okawa e o italiano Paolo Pani, todos do Centra, foram verificar até que ponto os buracos negros podem ser comuns. Fizeram-no através de simulações numéricas que encontrassem soluções para as complexas equações de Einstein, utilizando o supercomputador do grupo de investigação coordenado por Vítor Cardoso, o Baltasar Sete-Sóis.
“Repetimos os cálculos dos polacos para ver se o cenário tão drástico deles era generalizado”, explica o investigador. “Será que se forma sempre um buraco negro ou também pode formar-se uma estrela estável que não vai dar um buraco negro?”
Só que os três investigadores introduziram algum realismo nas suas simulações. Para tal, consideraram que a matéria nunca está perfeitamente fechada numa caixa: numa estrela como o nosso Sol, por exemplo, a matéria vai-se sempre libertando sob a forma de energia, o que poderia ser suficiente para impedir o nascimento de um buraco negro.
O que demonstraram, num artigo científico que será publicado na revista Physical Review D, é que um buraco negro apenas se forma em circunstâncias especiais. “Parece trivial, mas não é. O nosso trabalho veio demonstrar que, realmente, a teoria concorda com as observações. Isto explica a maior parte das coisas que vemos [no Universo]”, diz Vítor Cardoso.
Que circunstâncias especiais são então essas? “Em princípio, um buraco negro forma-se quando uma quantidade suficiente de massa está confinada numa zona suficientemente pequena”, explica outro dos autores do trabalho, Hirotada Okawa, num comunicado do Centra.
Nem sempre as condições especiais para esse confinamento estão assim reunidas. Por um lado, os astros com até três vezes a massa do Sol vão dissipando a sua energia, escapando ao destino de buracos negros. Por outro lado – e embora a matéria atraia matéria, através da força de gravidade –, também há outras forças que contrariam a gravidade, como a pressão exercida à superfície da Terra e que não nos deixa afundar chão adentro. Ou a pressão exercida em astros já maiores do que a Terra, como o Sol, sustido neste caso enquanto consome o seu combustível em reacções de fusão nuclear. Já agora, diga-se que quando o Sol ficar sem combustível e começar a morrer, daqui a uns 5000 milhões de anos, irá transformar-se numa anã-branca. Expelirá as camadas exteriores, restando um núcleo comprimido de pequenas dimensões e grande densidade, que ainda assim não será um buraco negro.
“Como existem forças repulsivas que actuam de forma a contrariar a força gravítica, este confinamento não acontece normalmente e não estamos rodeados de buracos negros formados a partir de sóis ou de planetas”, conclui Hirotada Okawa. “Descobrimos que, em casos realistas, pode ocorrer o colapso da matéria, mas não é assim tão fácil”, sublinha também Paolo Pani, no comunicado.
Portanto, aqui na Terra e nas proximidades não há o perigo de sermos engolidos por um buraco negro e o que se pensava sobre a sua formação de mantém-se, segundo os resultados da equipa em Portugal. “O nosso artigo demonstra que podemos estar descansados. A gravidade nem sempre ganha”, resume Vítor Cardoso.
Falta agora pôr debaixo dos holofotes o Baltasar Sete-Sóis – o supercomputador que passou cerca de dois meses a resolver as equações de Einstein, para que a equipa pudesse chegar a estas conclusões. Tornou-se uma realidade quando, em 2010, Vítor Cardoso ganhou um milhão de euros do Conselho Europeu de Investigação (ERC, na sigla em inglês). “[O dinheiro] era para estudar os segredos das equações de Einstein, incluindo os segredos sobre os buracos negros”, conta o investigador, que com cerca de 100 mil euros comprou o supercomputador.
Havia depois que lhe dar um nome. Como Vítor Cardoso e a sua mulher, designer, gostam dos livros de José Saramago, foram falar com Pilar del Río, que viveu com o escritor. O cientista e a designer disseram-lhe que tinham encontrado inspiração em Baltasar, o Sete-Sóis, personagem de Memorial do Convento que, ao perder a mão esquerda na guerra, foi mandado embora do exército. Encontrou trabalho no estaleiro do convento de Mafra, onde conhecerá Blimunda, e ajudará o padre Bartolomeu Lourenço a construir a passarola.
“É Baltasar Sete-Sóis que ajuda o padre Bartolomeu a construir o sonho: uma máquina voadora. Ele é que dá o trabalho para se construir essa máquina, apesar de ser outra pessoa que ia voar nela”, nota Vítor Cardoso. “No nosso caso, a máquina é que nos ajuda a resolver as equações, a máquina é uma amiga.”