Para além do bem e o mal – um desafio para a Neuroética

Inspirados pela meta-ética, podem vislumbrar duas formas básicas de apresentar uma teoria de valor. Por um lado, uma reflexão sobre o que é bom e mau em si mesmo, por outro lado, a reflexão sobre aquilo que cada indivíduo considera como bom ou mal.

No âmago desta reflexão sobre a essência da fundamentação dos valores está uma tradição judaico-cristã na qual esta capacidade electiva aparece como o resultado de uma estranha forma de criação divina: porque feito à imagem e semelhança de Deus, o homem é livre para ser responsável pelas suas acções. Até hoje, todas as teorias do valor estiveram condicionadas pelos pressupostos de uma pré-compreensão do significado de valor.

Assiste-se agora a uma consistente mudança de paradigma que resulta da “revolução das neurociências” operada pelas técnicas de neuroimagem. Os avanços tecnocientíficos verificados na segunda metade do século XX conduziram a uma “neurofisiologia dos valores” através da identificação da activação das áreas cerebrais. Descobrir os modelos de activação neuronal, pode conduzir a uma escravatura do próprio conceito de pessoa.

Perante tal cenário, a Neuroética, pela própria natureza de encontro entre as novidades difundidas pelas neurociências e a reflexão bioética, exige uma postura que está para além da sofisticação da Neurofilosofia, refazendo a concepção interna dos princípios bioéticos e as interpretações mais comuns da Ética. Esta é claramente uma proposta de uma categoria central para a sua compreensão e fundamentação.

Para a nova fundamentação da teoria do valor apela-se à indignação. Este conceito, não é utilizado no sentido moral de um puritanismo desinfectante de tudo aquilo que pode escandalizar o pensamento ordinário. A indignação de que se fala é a reacção perante um tratamento indigno da realidade; perante a percepção dos resultados globalmente espetados nas promessas de futuro “preternatural” que postula um redimensionamento da Humanidade e perante as habilidades do intelecto em tecer teias justificativas para o injustificável.

Não podemos esquecer que as neurociências têm como objectivo a percepção global do fenómeno do funcionamento neuronal, ao mesmo tempo que assumem uma perspectiva “antecipadora”. O avanço das ciências neurológicas tem conduzido a uma materialização dos fenómenos extra-sensoriais. Desta tendência surge uma explicação científico-natural de fenómenos que até agora eram entendidos como do foro espiritual.

Comparadas com as questões éticas suscitadas pela genética molecular, existe uma clara falta de apreciações relativamente às questões das neurociências. Alguns dos temas mais pertinentes da neuroética são de natureza operativa, relacionados com a aplicação da neurotecnologia e o seu comprometimento na vida do indivíduo e na sociedade, como é o caso da neuropotenciação, do neuromarketing, do “brain fingerprinting”, ou do cognitivismo; mas outros são de caris mais filosófico, e relativos à forma como nos pensarmos como pessoas, como agentes de moralidade e seres espirituais.

O projecto tosco da busca de uma fórmula apologética de materialização da “alma” é substituído, por exemplo, pelas “equações de Goldman e de Nernst”, com o recurso à neurociência computacional, ou pelas posições de Patrícia Churchland. Tal como no campo da genética, as neurociências conectam com os fundamentos biológicos da essência do próprio homem. A relação entre o cérebro e o “eu”, por exemplo, é mais directa que a relação do “eu” com o genoma humano.

Em Portugal, a abordagem à problemática dos elementos onto-antropológicos das neurociências teve um avanço significativo com o projecto de investigação “Novas imagens do ser humano e das relações interpessoais que emergem das ciências cognitivas”, liderado pelo saudoso professor Alfredo Dinis. Seguindo esta herança, o Gabinete de Investigação em Bioética do Instituto de Bioética da Universidade Católica Portuguesa tem desenvolvido uma linha de investigação na área da neuroética que pretende ajudar à edificação de uma nova linguagem da bioética através do diálogo com as neurociências.

Pensar a articulação entre Ciência e Ética em termos dicotómicos é contraproducente e tem como resultado o aprofundamento do fosso relacional. Na nova dimensão ética das neurociências não existem dois lados da barricada. O conceito de “Ciência com consciência” significa ciência um projecto cosmológico de cariz antropológico. Este é o propósito da bioética e, ao mesmo tempo, o seu problema fundamental.

Docente do Instituto de Bioética da Universidade Católica Portuguesa, no Porto
 
 

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