O estranho mundo novo dos têxteis high-tech
Roupa feita com leite, vestidos que se dissolvem na água, fibras com “termóstato” integrado, tecidos semeados de bactérias que repelem os mosquitos. Alguns têxteis ditos “técnicos” parecem vir de outro mundo.
A cena passa-se durante um congresso organizado no âmbito da feira internacional TechTextil 2015, que de 4 a 7 de Maio apresentou, em Frankfurt (Alemanha), o que de mais alta tecnologia se faz na indústria têxtil mundial. Este ano, a feira acolheu 1389 empresas, 20 das quais portuguesas.
O que provocou o interesse dos participantes foi o facto de no CeNTI (Centro de Nanotecnologia e Materiais Técnicos, Funcionais e Inteligentes), em Vila Nova de Famalicão, a equipa de Nelson Cardoso estar a desenvolver uma nova geração de fibras de poliéster termorreguladoras, com aplicações que vão da roupa de todos os dias aos edredões, passando pelo vestuário protector dos adeptos de ambientes extremos.
O ingrediente especial destas fibras foi desenvolvido, em finais dos anos 1980, pela agência norte-americana NASA para os fatos dos seus astronautas. Conhecidos sob a sigla PCM (phase-change materials em inglês), são compostos que têm a capacidade de “mudar de fase” – neste caso, de sólido para líquido e vice-versa – em função da temperatura, armazenando grandes quantidades de calor acima da sua temperatura de fusão e libertando calor quando a temperatura desce abaixo desse limiar.
A particularidade dos PCM (que na indústria têxtil costumam ser parafinas) é que mantêm assim uma temperatura quase constante à sua volta. E como existem PCM cujas temperaturas de fusão são próximas da temperatura normal do corpo humano (37 graus Celsius), é fácil perceber a sua utilidade quando são integrados, por exemplo, numa T-shirt ou numa camisa de noite.
Actualmente, o líder mundial do fabrico de têxteis termorreguladores com PCM é a empresa multinacional Outlast. Com sede nos EUA, detém a patente comercial do fabrico de microscópicas cápsulas cheias de PCM para uso civil. Estas microcápsulas podem ser dispersadas dentro de fibras ou têxteis sintéticos para produzir todo o tipo de artigos onde o controlo de temperatura é importante: calçado desportivo, sacos-cama, protectores de colchão, roupa, coberturas de assentos de automóvel. As peças que integram estas microcápsulas vêm, em geral, identificadas por uma etiqueta “Outlast” a acompanhar a marca do fabricante do produto final.
“O modo de acção dos PCM é diferente do wicking”, explicara-nos no dia anterior Barbara Fendt, responsável da Outlast Europa, quando visitámos o stand da empresa na feira. O wicking, que é a tecnologia mais frequentemente utilizada para o controlo da temperatura ao nível do vestuário, consiste em “drenar” a transpiração corporal para o exterior, afastando-a da pele – o que não deixa, segundo a nossa interlocutora, de criar desconforto e de provocar uma sensação de frio quando arrefecemos. “O PCM, em vez de evacuar a transpiração, funciona impedindo que transpiremos quando a temperatura do nosso corpo aumenta.” Por que é que este tipo de têxteis não é mais utilizado? “Porque são mais caros”, responde Barbara Fendt.
Quanto ao CeNTI, está a ir mais longe precisamente nesta área, desenvolvendo fibras de poliéster que, em vez de conterem microcápsulas com PCM, integram directamente o PCM líquido no centro da fibra. Ora, como nos explicou à saída da conferência Carla Silva, líder da equipa do CeNTI, o facto de misturar directamente o PCM com o polímero da fibra aumenta a eficiência termorreguladora ao aumentar substancialmente a quantidade de PCM presente na fibra.
O fabrico destas fibras é um processo complicado “e ainda temos alguns desafios pela frente”, acrescentou. Mas estes investigadores têm uma vantagem indiscutível: o CeNTI alberga uma das poucas máquinas no mundo que permitem fabricar este tipo de fibras têxteis em quantidades suficientes para atingir um nível de produção pré-industrial. “É uma extrusora que nos permite produzir oito quilos por hora destas fibras ‘bicomponentes’ [poliéster e PCM]”, diz Carla Silva.
A nova fibra com PCM do CeNTI possui ainda um outro ingrediente activo, desta vez à sua superfície: um pigmento que reflecte os raios infravermelhos – aqueles que fazem com que os têxteis, e em especial os de cores escuras, aqueçam quando são expostos ao sol.
Como explicara Nelson Cardoso lá dentro uns momentos antes, os testes térmicos já feitos naquele laboratório português mostram que, após 15 minutos de exposição ao calor, a temperatura desta fibra compósita fica 3,5 graus Celsius abaixo da temperatura de uma fibra de poliéster preto sem qualquer ingrediente adicional (diga-se que, sem o pigmento reflector, essa diminuição mal chega aos 2,5 graus Celsius). Foi sem dúvida a combinação inédita dessas duas funcionalidades que suscitou o interesse dos presentes.
Fibras lácteas e desfiles de moda
Não menos interessante – e bastante mais estranha – foi a apresentação que se seguiu: o desenvolvimento de fibras à base de… leite estragado. “Até dá para as comer”, começou por dizer Anke Domaske, da empresa alemã Qmilk, por ela fundada em 2011. “Todos os anos, 200 milhões de toneladas de leite são deitadas fora só na Alemanha” porque ficam fora do prazo, salientou.
“A Qmilk revolucionou um processo que existe desde os anos 1930 para fabricar fibras de caseína, uma proteína do leite”, disse ainda. “Hoje, graças a uma espécie de máquina de fazer esparguete, produzimos fibras muito semelhantes à seda" – que, ainda segundo ela, possuem propriedades antibacterianas, não são inflamáveis e são extremamente leves e agradáveis ao toque. “É quase como se não levássemos nada vestido”, conclui. A sua empresa está neste momento a “lançar-se no mercado”, diz-nos Anke Domaske.
O caso desta jovem empresária alemã, ao mesmo tempo bióloga e designer de moda, exemplifica um fenómeno que esteve presente ao longo da feira: a vontade de mostrar que os têxteis high-tech também têm o seu quê de glamour. E embora as considerações estéticas não sejam de todo prioritárias neste ramo – ninguém exige de um fato de bombeiro que seja chique, mas apenas funcional –, não é por acaso que a feira incluía vários desfiles de moda e que uma série de modelos se passeava pela feira com vestidos feitos de tecidos não necessariamente destinados a usos mundanos.
A Smart Textiles – centro de investigação na área dos têxteis “inteligentes” da Universidade de Borås (Suécia) – foi um dos expositores a explorar essa lógica da tecnologia aliada ao design de moda, apresentando por exemplo um vestido feito de um polímero sintético… solúvel na água. As zonas onde o têxtil – branco e rígido – foi parcialmente dissolvido pela autora desta peça única (a designer sueca Riikka Talman) parecem feitas de uma ténue renda cinzenta. “Isto não pretende ser uma verdadeira peça de vestuário”, diz-nos Angelica Därnlöf, porta-voz da Smart Textiles. Percebe-se: ninguém gostaria de entornar uma bebida no vestido para o ver a desintegrar-se no meio de uma festa.
Mas a ideia é que, através do efeito estético produzido, o vestido demonstre a funcionalidade do material – que pode servir, explica-nos ainda Angelica Därnlöf, para aplicações onde seja preciso libertar uma substância contida numa saqueta ao contacto da água (por exemplo, dentro de uma máquina de lavar roupa).
A seguir, ela apresenta-nos contudo duas peças de roupa mais utilizáveis enquanto tais: “o primeiro vestido feito integralmente de fibras de algodão reciclado” e um outro, em papel, “lavável e no fim utilizado em compostagem”.
Foi a pedido da Smart Textiles que uma outra designer sueca, Karolina Nilsson, fabricou o vestido que ilustra este artigo. Na realidade, o tecido utilizado destina-se à construção de estufas frias para o cultivo de… tomateiros. Eficiente em termos de poupança de energia, é fabricado e comercializado pela empresa sueca Ludvig Svensson. “Queríamos mostrar uma peça de vestuário feita com um tecido diferente”, salienta Angelica Därnlöf.
Cruzámo-nos também com uma empresa portuguesa que quer assumidamente fazer entrar os têxteis técnicos na roupa habitual. “Queremos levar novas funcionalidades para a roupa do dia-a-dia”, disse-nos Ana Salcedo, co-fundadora e directora de I&D da Manifesto Moda, com sede em Guimarães, enquanto nos mostrava, penduradas num varão, várias peças de vestuário com aspecto confortável – e algumas até bastante elegantes. Há lá, entre outros, T-shirts que contêm bio-repelentes de mosquitos e que são “muito práticas em climas quentes” – podendo mesmo contribuir para a protecção contra doenças transmitidas por estes insectos. “A eficácia da repelência dura mais ou menos 70 lavagens”, diz-nos Ana Salcedo. “Usado esporadicamente em viagem, pode durar mais de três anos; usado com bastante frequência, entre um e dois anos.”
“Colaboramos essencialmente com a Universidade do Minho, a Nova [de Lisboa], a Católica e a Faculdade de Arquitectura de Lisboa”, explica ainda esta responsável. Quanto às vendas, a maior parte é feita online. “Em breve apresentaremos uma nova linha de lenços, wraps e toalhas de praia anti-mosquito.”
Voltando ao início – e ao congresso de têxteis futuristas –, a Devan Chemicals (empresa belga com instalações distribuídas pela Bélgica, EUA, Reino Unido e Portugal) apresentou uma outra forma, mais inédita, de integrar funcionalidades anti-insectos (e outros bichinhos) nos tecidos, que passa pela utilização bactérias inócuas para o ser humano.
“Nos subcontratamos a natureza”, explicara o também jovem português Roberto Teixeira (que trabalha na sede belga da empresa) durante a sua conferência. “Por exemplo, para o controlo anti-ácaro.” Como ? Encapsulando esporos (a forma "dormente") de bacilos que se alimentam exclusivamente de excrementos de ácaros. Ora, são precisamente os dejectos destes microscópicos artrópodes que são os responsáveis pelas reacções alérgicas ao pó das casas. Ao serem integradas em colchões, as microcápsulas vão libertando o seu conteúdo ao longo de dez e mesmo de 20 anos, explicou ainda Roberto Teixeira.
Com outros bacilos, a Devan também desenvolve têxteis para o controlo anti-mosquitos. E os testes em curso no laboratório, salienta este cientista, já mostraram que o mosquito Aedes aegypti, o principal vector de doenças como a dengue e a febre amarela, evita pousar-se em têxteis onde esse bacilo está presente.
O PÚBLICO viajou a convite da Messe Frankfurt (Feira de Frankfurt)