Na Expo dos alimentos de Milão, sem se saber o que fazer aos transgénicos na Europa
A Comissão Europeia acaba de lançar uma proposta que, se for aprovada, permite aos Estados-membros proibirem alimentos transgénicos importados, hoje muito importantes na pecuária. Mas nem o sector agrícola nem o da biotecnologia e nem sequer a Greenpeace estão contentes com a proposta.
Aproveitando a mostra, a Comissão Europeia promoveu um dia de conferências para jornalistas, onde se abordaram algumas das grandes questões actuais sobre a alimentação: a rotulagem dos produtos alimentares (ver caixa), a fraude alimentar, a crescente resistência das bactérias aos medicamentos e os organismos geneticamente modificados (OGM, ou transgénicos).
Dos quatro debates, foram os transgénicos que suscitaram uma conversa mais animada. A 22 de Abril, a Comissão Europeia lançou uma proposta para alterar a legislação sobre os produtos alimentares com OGM, tanto para consumo humano como para os animais do sector agrícola. A título de exemplo, chegam todos os anos à Europa mais de 30 milhões de toneladas de soja transgénica para alimentar o sector pecuário.
A proposta dá direito a que cada Estado-membro possa proibir o consumo desses produtos no seu território, mesmo que a Comissão Europeia tenha aprovado um determinado OGM previamente. No caso do cultivo de OGM dentro da União Europeia, esta medida já está em vigor desde 2 de Abril último. Mas a mudança na lei agora proposta para o consumo de transgénicos é criticada pelos agricultores, pelo sector da biotecnologia e até por associações ambientalistas, como se viu em Milão.
Desde o aparecimento da agricultura que o homem tem vindo a escolher as plantas com certas características (o tamanho, o sabor, a cor…) para melhorar as variedades agrícolas. Mas só há poucas décadas, com a engenharia genética, é que passou a ser possível mexer no ADN dos organismos. Desta forma, pode-se fazer o mesmo que se fazia através da selecção artificial, mas de uma forma mais poderosa, já que não se está dependente da variabilidade natural de cada espécie. Por exemplo, no milho MON810, da multinacional Monsanto, que se pode cultivar na União Europeia, foi introduzido um gene de uma bactéria que faz com que a planta produza uma espécie de insecticida contra a broca-do-milho, uma lagarta que ataca as plantações.
As associações ambientalistas estão, em geral, contra o uso de produtos transgénicos fora do laboratório. “Os OGM podem espalhar-se pela natureza e cruzar-se com organismos naturais, contaminando de uma forma imprevisível ambientes que não são geneticamente modificados”, defende a Greenpeace no seu site, onde acrescenta que os transgénicos tornam os países dependentes da “agricultura controlada pelas empresas”. E muitos cidadãos europeus desconfiam do seu uso. No Eurobarómetro de 2010 sobre biotecnologia – relatório com os resultados de um questionário sobre biotecnologia aos cidadãos dos 27 países da UE mais a Hungria, a Turquia, a Islândia, a Noruega e a Suíça –, 59% dos inquiridos discordavam da frase “os alimentos geneticamente modificados são seguros para a saúde”.
Para um OGM poder entrar no mercado da UE – tanto para ser cultivado como para estar presente em produtos alimentares –, tem primeiro de passar pelo crivo da Agência Europeia de Segurança Alimentar (AESA). Esta agência faz uma avaliação científica do seu risco e dá um aval positivo ou negativo. Se a avaliação for positiva, a Comissão Europeia elabora uma proposta para ser votada pela Comissão de Ambiente, Saúde Pública e Segurança Alimentar, composta por eurodeputados.
O problema é que nas várias votações desta comissão tem havido um número elevado de abstenções, e não se obtém uma maioria suficiente para haver uma decisão para adoptar ou recusar cada OGM. Por isso, a decisão tem sido reencaminhada para a Comissão Europeia, que não podia fazer muito mais do que seguir a avaliação da AESA, já de si positiva. Com a nova proposta, os Estados-membros podem banir um determinado produto com OGM, mesmo que a Comissão Europeia o aprove, e têm apenas que justificar essa recusa.
“Propomos dar aos Estados-membros o mesmo direito de decisão que demos em relação ao cultivo de transgénicos”, começa por dizer aos jornalistas Ladislav Miko, director-geral interino da Direcção-Geral de Saúde e Segurança Alimentar da Comissão Europeia, iniciando a discussão do painel.
Para o responsável, a nova proposta é uma medida mais democrática, pois continua a permitir que a avaliação científica da AESA e a aprovação geral de cada OGM sejam feitas a nível europeu, mas dá aos Estados-membros o direito de discordarem da decisão desde que o fundamentem. No entanto, Ladislav Miko avisa que é necessário ser-se responsável neste assunto, e lembra que se os produtos alimentares transgénicos forem proibidos, será difícil alimentar os animais que dependem deles: “Enquanto o cultivo e os alimentos transgénicos para humanos quase não estão presentes na Europa, os alimentos para a pecuária estão muito presentes. Estes alimentos não são facilmente substituídos por outras soluções. Estamos dependentes, em larga medida, da importação [de transgénicos para alimentar os animais].”
A Greenpeace contesta este argumento e defende a proibição tanto do cultivo como da importação de produtos transgénicos. “Há alternativas políticas para mudarmos para um sistema onde a Europa é mais auto-suficiente”, diz Marco Contiero, responsável pela área da agricultura e dos OGM daquela associação ambientalista, que colocou a questão dos transgénicos numa discussão mais global sobre a sustentabilidade da agricultura. “Será que deveremos continuar a consumir milhões de toneladas de soja transgénica [para a produção de carne]? O que estamos a fazer não está certo do ponto de vista económico, de saúde ou do ambiente. Por que não começamos a discutir este assunto das proteínas vegetais de uma forma séria? O que significaria termos uma política de agricultura comum.” Algo que fica, segundo a Greenpeace, mais distante com a nova medida.
Nathalie Moll, secretária-geral da EuropaBio, a associação europeia das indústrias de biotecnologia, receia que a proposta atrase ainda mais a investigação na biotecnologia. “Por um euro investido na biotecnologia, os agricultores ganham quatro euros”, lembra a especialista, acrescentando que a indústria de biotecnologia deixou de ser forte na Europa.
A especialista receia ainda que os cidadãos não tenham percebido que as decisões de cada Estado-membro já não são sobre a segurança de cada OGM, uma vez que esse aspecto já foi avaliado cientificamente pela AESA. “Será que as pessoas vão compreender que a razão para se proibir os produtos já não foi uma razão baseada na ciência?”, questiona Nathalie Moll. “Se os países têm o direito de proibir produtos sem se basearem em critérios científicos, então qual é o próximo sector industrial que vai ser atingido?”
“A questão não é só sobre conhecimento, é também sobre valores, educação”, diz por sua vez Bernhard Url, director-executivo da AESA, considerando que, apesar da avaliação científica da agência não estar em causa, as decisões finais não terminam aí. “A questão também é sobre os riscos que uma sociedade quer, ou não, tomar. Em que sociedade queremos viver na Europa? Isto tem de ser discutido. Precisamos da sociedade civil [para isso].”
No sector agrícola, teme-se que a proposta divida os países europeus e afaste a UE de uma política económica comum. “A medida preocupa-nos. Queremos que a Europa seja forte e esta decisão torna a Europa fraca”, considera por sua vez Deborah Piovan, vice-presidente da Confagricoltura Rovigo, a associação de agricultores da província italiana de Rovigo. E retoma a questão da educação científica. “Este é um problema de comunicação. As pessoas estão preocupadas [com os transgénicos], e eu não sei porquê. Há um problema de educação científica. Se não confiarmos nos nossos cientistas, então em quem é que vamos confiar? Não podemos alimentar o mundo com agricultura biológica.”
Mas para a Greenpeace, essa é uma questão falsa. “As pessoas que têm fome são afectadas por muitos problemas”, diz Marco Contiero, que leva o debate para outras questões de fundo. “Não têm mercados, não têm direitos políticos nem civis, não têm terra, não têm a mais simples tecnologia à sua disposição. Não têm irrigação. Cerca de 40% da nossa comida vai para o lixo. Na África subsaariana, perde-se cerca de 44% da pouca produção que existe porque não há capacidade de armazenamento”, acrescenta o ambientalista. “Por isso, vamos olhar para a realidade. Se queremos alimentar o mundo, há muitas coisas que podemos fazer.”
O PÚBLICO viajou a convite do Centro Europeu de Jornalismo