Oliver Brady: “Este surto obrigou as autoridades de saúde pública globais a dar prioridade ao ébola”

Oliver Brady, da Universidade de Oxford, no Reino Unido, tem 24 anos estuda doenças hemorrágicas de origem viral, como o ébola. Analisa como é que estas doenças se propagam no espaço e no tempo e o pior surto de sempre do ébola não é excepção.

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Um trabalhador alimenta uma criança com ébola num centro dos Médicos Sem Fronteiras na Serra Leoa Carl de Souza/AFP
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Oliver Brady, epidemiologista da Universidade de Oxford DR

Como é que a sua equipa chegou ao número de 30.000 pessoas que já teriam tido a necessidade de um tratamento ou de profilaxia para o ébola?

Dividimos as pessoas em risco em quatro grupos. Aqueles que estão infectados com o vírus do ébola e todas as pessoas em contacto próximo com eles (na maioria, familiares): 22.000 indivíduos. Os que estão sob um grande risco de estar expostos ao vírus devido à sua ocupação, como médicos, enfermeiros e trabalhadores que retiram os corpos dos doentes: 3000 indivíduos. As pessoas que prestam serviços e não são profissionais de saúde, como os responsáveis governamentais e pessoal de organizações não-governamentais que dão apoio logístico, e que estão sob risco baixo de infecção mas são vitais para o controlo do surto: 5000 indivíduos. O pessoal que faz parte do grupo de contingência nacional de cada país, e lida com casos importados que escapa à rede de vigilância: 250 indivíduos. Para cada categoria, fizemos estimativas que foram baseadas em dados por doente ou por cama e depois ajustámo-las ao tamanho do surto que está a decorrer.

Aqueles que financiam ou produzem tratamentos novos devem usar as folhas de cálculo que criámos para obterem as suas próprias estimativas baseadas nas especificidades desses tratamentos e para quem eles se destinam.

No seu artigo, disse que esse número era de um cenário conservador. Qual seria um cenário não conservador

O cenário conservador é baseado nas características dos surtos que aconteceram no passado, todos eram muito mais pequenos e na maioria em zonas rurais e não em zonas urbanas. É possível que no surto actual a quantidade de contactos de um doente duplique ou triplique em relação aos contactos nos surtos passados. Isso significa que cerca de 50.000 pessoas já poderão ter necessitado de tratamento ou de vacinas até agora. No entanto, ainda não se sabe se todas estas pessoas a mais que foram contactadas [no contexto urbano] estão realmente em risco de ficarem doentes.

O surto actual pode ser travado sem vacinas ou fármacos?

Para já, não temos informação para responder a isso, e ainda não analisámos essa questão especificamente. O que nos parece claro é que a forma com que estamos a usar as ferramentas à nossa disposição para combater o ébola não está a funcionar. As melhorias mais imediatas poderão vir de estratégias que incluam quarentenas e aumento do uso de equipamento de protecção do pessoal, mas adaptado para as zonas urbanas. Não é claro, no entanto, se isto será suficiente para parar o surto. Por isso, é importante que se explorem todas as opções possíveis.

Testemunhámos os primeiros conflitos entre as populações em quarentena e a polícia, na Libéria. Por outro lado, há um milhão de pessoas sob quarentena nos quatro países afectados. Esta situação é uma bomba prestes a explodir?

Para compreender a gravidade que este surto representa, é preciso compreender os efeitos indirectos de um surto de ébola deste tamanho. A histeria que pode envolver um surto destes é capaz de causar uma desestabilização civil e política em massa. Os efeitos mais graves seriam sentidos no sistema de saúde: muitas pessoas poderiam recusar-se a ir aos centros e muitos profissionais poderiam recusar-se a trabalhar neles. Isto significa que muitas pessoas iriam morrer de doenças curáveis como a malária ou a tuberculose, porque não estão a receber os níveis básicos de ajuda.

Como epidemiologista, pode dar-nos um cenário bom e um cenário mau para o desenlace deste surto?

Torna-se cada vez menos claro o que se sabe sobre este surto à medida que ele cresce, por isso é muito difícil dizer qual vai ser o desenlace, seria muito especulativo. A OMS já admitiu que o número actual de casos está provavelmente “muito subestimado”, por isso é muito difícil avaliar a situação e perceber quão pior poderá tornar-se. Podemos imaginar como o pior cenário de todos aquele em que a doença se estabelece num país com uma grande densidade populacional como a Nigéria ou se espalha para fora da África Ocidental: a Índia ou o Sudeste da Ásia. Mas felizmente isso ainda não aconteceu e, ao fazermos modelos de propagação de doenças, isso permite-nos identificar as rotas que têm maior risco de espalharem a doença e concentrar nelas os esforços de controlo.

Que países estão em risco maior de terem ébola vindo deste surto?

Não analisámos isso, mas, devido ao grande número de plataformas de transporte que têm, o Quénia e o Gana estão a tomar medidas para minimizar a propagação da doença.

Será possível que este surto nunca termine?

Isso parece-me improvável. A doença mata demasiadas pessoas para se tornar auto-sustentável. Neste momento, o controlo que está ser feito é inadequado para parar a propagação, mas vão ser postos em marcha mais esforços.

Normalmente, os surtos de febre hemorrágica de ébola ou de Marburgo, um primo do ébola, restringem-se a um local, uma aldeia remota em África. O que mudou neste surto que fez com que tivesse uma proporção muito maior?

Para já, isso não é claro. Mas é importante compreender isso, se queremos calcular qual será a ameaça do ébola no futuro. Desde 2000 que os surtos do ébola se tornaram mais frequentes, tendo alguns causado um número significativo de casos: 200 a 400. O surto actual vai muito para lá disso e é o primeiro a penetrar em áreas urbanas. As lições a aprender deste surto serão importantes no futuro para evitar os números altos de casos e de mortos que estamos a ter agora.

Porque é que se demorou tanto tempo a reagir a este surto?

Ninguém podia ter previsto que cresceria tanto. Agora, é importante aprender as lições que pudermos.

O surto na África Ocidental iniciou-se em Dezembro de 2013 na Guiné, mas a OMS só foi notificada mais tarde, em Março. O tempo que passou entre o início do surto e a sua notificação contribuiu para o seu crescimento? E acha que a OMS, por sua vez, demorou tempo de mais até declarar o surto como uma emergência de saúde internacional?

Ninguém poderia prever que este surto iria causar o número de casos que veio a causar, nem que se iria espalhar como o fez. Mais importante do que encontrar culpados é compreender a nova ameaça que o ébola representa à luz do surto que está a decorrer e usar isso para preparar medidas apropriadas de vigilância e controlo.

Acha que existe um “antes” e um “depois” de como a comunidade científica mundial e os governos olham para o vírus do ébola, devido ao surto actual?

Absolutamente. Este surto não tem precedentes e o caos directo e indirecto que causou obrigou as autoridades de saúde pública globais dar-lhe prioridade. Um aspecto disso é que já mostrou que o número de indivíduos que necessitam de medicamentos ou vacinas é muito maior do que nos surtos do passado.

Antevê uma maior frequência de surtos de ébola ou do Marburgo nos próximos anos?

Apesar de ser impossível prever o futuro, vimos na última década um número maior de pessoas a viver em locais onde se pode estar exposto ao ébola e ao Marburgo. E vimos que estas pessoas estão a movimentar-se muito mais no seu país e a nível internacional do que antes. Isto aumenta a possibilidade para de haver surtos mais frequentes e maiores. 

Como é que a informação científica sobre o ébola pode ser transmitida às populações locais, havendo barreiras culturais como a existência de curandeiros e preconceitos em relação aos ocidentais?

Essa é um assunto muito difícil e muitas pessoas estão a tentar compreendê-lo. Torna-se uma preocupação ainda maior quando se utiliza um tratamento que não está comprovado cientificamente, por isso terá de se ter em conta essas considerações ao lançar-se uma nova vacina ou medicamento.

Devemos estar preocupados com o novo surto de ébola na República Democrática do Congo? As medidas tomadas pelo Governo congolês são suficientes para o controlar?

Qualquer surto do Ébola numa nova área é um motivo de grande preocupação. Felizmente, parece que este surto foi identificado cedo e deve-se tomar todas as precauções disponíveis para a sua propagação. Como vimos antes, tanto os esforços nacionais como os internacionais dão-nos as melhores hipóteses para travar a propagação do ébola.

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