Em ano de eleições, investigadores querem dar força política à ciência

Encontro em Lisboa de várias associações científicas discutiu o estado do sistema científico português e defendeu a importância de mais dinheiro para a ciência.

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A actual situação do sistema científico português motivou a elaboração de uma carta aberta a pedir mudanças na política científica Sandra Ribeiro (arquivo)

O documento reflecte a reacção de uma parte da comunidade científica às políticas do Ministério da Educação e Ciência, liderado por Nuno Crato, que tem insistido na retórica da “excelência”. A Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) – responsável pelo financiamento público para a investigação e tecnologia – foi especialmente criticada pelo processo de avaliação aos centros de investigação de 2014-2015.

“A busca da ‘excelência’ não pode significar o recuo para visões unidimensionais da prática científica”, lê-se na carta, que resultou de várias reuniões entre as associações. “A política científica nacional requer estabilidade e previsibilidade no financiamento. As associações relembram o compromisso assumido no Tratado de Lisboa em investir 3% do PIB da União Europeia em I&D.” No documento, pedem-se carreiras fortemente avaliadas, mas estáveis: “Assegurar contratos de trabalho e financiamento para doutoramentos, pós-doutoramentos e jovens investigadores (…) são condições necessárias e imprescindíveis de um compromisso sério com os processos de pesquisa.”

O dia contou com vários painéis de discussão. “Devia-se constituir uma plataforma de associações científicas para fazer lobby, para voltarmos a pôr a ciência na agenda pública”, sugeriu Ana Nunes de Almeida, presidente do conselho científico do ICS e socióloga, já no final do dia. “Esta é a melhor homenagem que podemos fazer a José Mariano Gago”, disse, referindo-se ao ex-ministro da Ciência de governos do PS, que morreu em Abril.

“A ideia da plataforma é uma ideia boa para ser trabalhada”, disse ao PÚBLICO João Teixeira Lopes, professor da Universidade do Porto, e um dos representantes da Associação Portuguesa de Sociologia (APS), que organizou o encontro. “Outra sugestão é fazermos uma ronda no Parlamento com as delegações dos grupos parlamentares, apresentarmos este documento e pedir-lhes que tomem uma posição em relação a estas questões”, acrescentou o investigador. O objectivo é obrigar os partidos a comprometerem-se com uma política científica durante a campanha para as eleições legislativas, em Outubro.

Além da APS, as outras organizações que se unirem para a elaboração deste documento foram a Associação dos Bolseiros de Investigação Científica (ABIC), a Associação Nacional de Investigadores em Ciência e Tecnologia (ANICT), a Associação Portuguesa de Antropologia (APA), a Associação Portuguesa de Ciência Política (APCP), a Associação Portuguesa de Demografia (APD), a Associação Portuguesa de Linguística (APL), a Associação Portuguesa de Profissionais em Sociologia Industrial, das Organizações e do Trabalho (APSIOT), a Ordem dos Biólogos (OBio) e a Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação (SPCE).

“Não há um desenvolvimento do país sem haver uma aposta séria no conhecimento”, considerou João Veloso na sessão de abertura, professor de linguística da Universidade do Porto e presidente da APL. “Esta ideia está a ser apagada do discurso político. O desinvestimento não é só financeiro, é também simbólico e retórico.”

Segundo a APS, a carta irá ser enviada a várias instituições, como à FCT. “Estas associações representam, no seu conjunto, milhares de cientistas”, lembrou João Teixeira Lopes. Apesar da transdisciplinaridade da iniciativa, no encontro ficou claro a necessidade de a alargar a mais associações científicas.

A manhã arrancou com a conferência do físico italiano Francesco Sylos Labini, do Instituto de Sistemas Complexos, em Roma, que se tem dedicado à divulgação científica italiana e ao estudo das dinâmicas da ciência. Um artigo recente publicado na revista PLOS ONE, de que é um dos autores, mostra que as publicações científicas de um país são proporcionais ao dinheiro que se investe na ciência. “Se queremos ter produção científica, temos de pôr dinheiro”, defendeu.

No painel da manhã, sobre o futuro da avaliação e o financiamento do sistema científico, as políticas do Ministério da Ciência foram alvo de muitas críticas. “As novas equipas que chegaram ao poder revelaram uma grande incapacidade ou falta de vontade para compreenderem a realidade do sistema científico português”, disse Ana Nunes de Almeida, referindo que a avaliação dos centros feita pela FCT representou a pior face deste problema. “Houve o propósito quantitativo de arrasar metade do sistema científico português com o lema de concentrar o dinheiro nos melhores, numa total insensibilidade e falta de preocupação e de equilíbrio entre áreas científicas, disciplinas e território.”

Já a olhar para o futuro, Gonçalo Leite Velho, arqueólogo e vice-presidente do Sindicato Nacional do Ensino Superior, alertou que “a comunidade científica deve ser envolvida e ter uma palavra a dizer em relação ao financiamento” dos novos projectos de investigação até 2020.

Segundo o sindicalista, que esteve também no painel da manhã, o programa Portugal 2020 (que decorre do programa comunitário Horizonte 2020) vai financiar os projectos com uma ligação forte entre a investigação e as empresas. “Quando há matérias que têm a ver com direitos de autor e patentes, o lugar dos investigadores tem de ser assegurado”, disse ao PÚBLICO. “Advogamos que a FCT faça um acompanhamento dos projectos, que verifique que estão lá os investigadores e que os investigadores têm de facto um papel de liderança.”

Ao longo do dia, a sala de conferências nunca se encheu e notou-se a ausência de jovens cientistas, que têm sido afectados nos últimos anos pela austeridade, num país em que um contrato de trabalho na ciência, com os direitos laborais associados, é quase uma miragem. “Este conjunto de associações mostra aos bolseiros de investigação científica que há pessoas que estão a fazer força para haver uma mudança na situação”, disse ao PÚBLICO André Janeco, presidente da ABIC, que esteve no encontro. Também João Teixeira Lopes defende que esta iniciativa “pode oferecer uma âncora plural, mas sólida” aos investigadores precários.

Carlos Fiolhais, físico e divulgador de ciência da Universidade de Coimbra, e que deu voz às críticas à política científica no último ano, está preocupado com a próxima geração de cientistas. “Os jovens têm a perspectiva de deixar o país, isso é bom para eles mas é mau para nós”, disse o físico no painel da manhã. “O nosso futuro será o futuro deles.”

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