É a excelência, estúpido

Mariano Gago olhava-se como um servidor do Estado. Ou melhor, o Estado era para ser servido (de preferência pelos melhores) e não para se servirem dele.

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Sou obrigada a falar de Mariano Gago, que faleceu na sexta-feira aos 66 anos de idade. Há algumas coisas que sinto o dever de dizer, mesmo que não sejam as mais importantes.

Conheci-o na revolta estudantil de 1969. Os laços de cumplicidade que se forjaram aí resistem a tudo. Era presidente da Associação do Técnico, eu estava em Económicas mas a convivência era constante enquanto durou a crise. Não era um contestatário igual a muitos outros. Lia com certeza Marx e Engels, mas também os clássicos da literatura. Já era o que sempre foi. Mais preparado, mais inteligente, a ver um pouco mais longe do que a Grande Revolução Cultural Proletária. São estas as minhas memórias mais longínquas. A última vez que falámos foi no almoço de aniversário do dr. Soares, em Dezembro. Estava igual a si próprio, sempre afável, nem dei por que estivesse doente. Ontem vi na televisão um reconhecimento da sua obra bastante generalizado. Não consigo avaliar com rigor o grau de hipocrisia de algumas das declarações, mas, pelo menos, este reconhecimento do seu papel crucial para nos colocar em matéria científica muito mais próximo do nível dos países europeu mais desenvolvidos, significa alguma coisa. Por uma vez, o país teve sorte: Mariano Gago teve tempo para consolidar a sua política através do critério imbatível dos resultados, porque esteve doze anos, primeiro no Ministério da Ciência e, depois, da Ciência e do Ensino Superior. A breve interrupção de dois anos (Barroso-Santana) não chegou para destruir o que ele já deixara feito. Hoje, quando vemos os nossos cientistas a brilhar lá fora, mas também cá dentro, nos centros de investigação de excelência, ninguém pode negar aquilo que o país lhe deve. O mérito também é dos chefes dos Governos a que pertenceu. Em primeiro lugar, de António Guterres, com os Estados Gerais que organizou para lançar as bases do seu programa de Governo. Foi aí que Mariano Gago apresentou as suas propostas revolucionárias (é mesmo o termo, porque eram absolutamente contrárias ao status quo universitário, fechado, hierarquizado, feito de capelas e capelinhas que defendiam do alto das suas cátedras tudo o que os não pusesse em causa). A maioria das políticas que apresentou foi realizada. Abriu a ciência e o ensino superior ao mundo, incluindo a internacionalização da avaliação, apostou na criação de uma nova elite científica preparada lá fora, que não aprendeu só a ciência mas também o modo como ela era feita nos países mais avançados. Em suma, colocou-nos no mapa científico europeu, vencendo resistências que pareciam impossíveis de vencer tendo como meta a excelência. Hoje, se os miúdos começam de pequenos a entusiasmar-se pelas coisas científicas, é graças ao Ciência Viva. Sem alarde, deixou ao país um legado único e, verdadeiramente, a coisa mais importante que pode ainda garantir um futuro aos nossos filhos e aos nossos netos. Hoje, toda a gente lhe tece elogios, mas foi contestadíssimo enquanto governou pelos mesmos que agora se curvam perante o seu contributo nacional. Assisti a vários episódios desses. Lembro um. Quando Mariano Gago lançou as parcerias com algumas grandes universidades americanas, como o MIT, assisti de boca aberta, confesso, a críticas ferozes à sua mania das grandezas. Como sempre acontece neste país, os que diziam isso deixaram de falar sobre o assunto a partir do momento em que os resultados se tornaram óbvios.

Lembrarmo-nos disto tudo é tanto mais importante quanto a mentalidade da maioria que nos governa vai em sentido contrário e muita gente que lhe é afecta tenta convencer-nos todos os dias que criámos doutorados a mais e para nada. Olham para a ciência como uma fábrica de salsichas, que se liga ou desliga conforme as necessidades e ignoram um facto primordial: a ciência precisa de uma massa crítica vasta e sólida para produzir a excelência e competir lá fora. É o mesmo com a educação. Os países que hoje são ricos e desenvolvidos, acabaram com o analfabetismo no início do século XX. Nós, sem esse efeito acumulado e irrepetível, temos um esforço muito maior a fazer. E como não temos (nem podemos ter) salários mais baixos do que Marrocos ou o Vietname, também não temos grande alternativa a não ser utilizar aquilo que acumulámos. Perceber isto é quase intuitivo. Quando ouço pessoas a brandir contra o excesso de doutorados (nem sequer comparam com a média europeia, da qual só agora nos estamos a aproximar), alegando que não têm emprego, dá-me vontade de sacar, metaforicamente, da pistola. Sejam quais forem as dificuldades, esses doutorados sabem pelo menos que dispõem de ferramentas que mais tarde ou mais cedo lhes serão fundamentais para construir um futuro melhor. O saber que adquiriram é-lhes útil, mesmo para fazer outras coisas. Quando Passos Coelho vai ao Japão dizer que a nossa economia se prepara para ser um das mais competitivas do mundo (fiquei de boca aberta), não está a pensar nos doutorados, está a pensar nos salários baixos. O risco é que um dia destes as famílias, que compreenderam que deviam investir na educação dos filhos mesmo com imensos sacrifícios, comecem a achar que não vale a pena.

2. Perguntei a Manuel Castells, há já um bom par de anos, qual era o factor principal do poder norte-americano. Ele respondeu sem a menor hesitação: as suas universidades. Pode ser que um dia seja assim também por cá. O essencial está feito. Também já está parcialmente feita a outra parte, mais difícil, que é a transmissão do saber para as empresas. Valente de Oliveira e Mira Amaral, no final dos governos de Cavaco, tiveram a visão suficiente para criar a Agência de Inovação (1993) dedicada a essa transmissão. Era apenas uma instituição embrionária. Durante os doze anos que Mariano esteve no Ministério, ela funcionou com resultados verdadeiramente notáveis. Há hoje incubadoras nas melhores universidades para fomentar esta transferência. Os resultados acabarão por chegar.

Quando o país regressar à superfície, temos pelo menos um sólido ponto de partida para reconstruir a economia. Com as empresas descapitalizadas, com a quebra brutal do investimento público e privado, esta capacidade científica e tecnológica é o que nos resta para atrair o investimento estrangeiro de que precisamos como de pão para a boca. E é também o único caminho decente que nos resta para alimentar a esperança no futuro. O mérito nunca é só de um homem. Muita gente contribuiu para pôr em prática as suas políticas. Teve com certeza defeitos e até pode ter errado em alguma coisa. Fez o que era preciso.

Mas há outro lado da vida de Mariano Gago que é ainda mais raro, mesmo que comum a outras pessoas que conheço da sua geração. Olhava-se como um servidor do Estado. Ou melhor, o Estado era para ser servido (de preferência pelos melhores) e não para se servirem dele. E o Estado era ou devia ser uma coisa séria e um instrumento estratégico para ajudar a pensar o país. Pensava assim e a sua vida foi assim, mesmo quando essa visão era esmagada por uma moda ideológica que via no Estado um obstáculo burocrático e dispendioso. Era um grande cientista e tinha uma vasta cultura. Vale a pena reler o seu Manifesto para a Ciência em Portugal. Está lá quase tudo para perceber o que somos como país. Regressando a 1969, talvez seja também importante dizer que, antes de tudo, para ele era preciso conquistar a liberdade.

 

 

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