Corrigindo Shakespeare: afinal Ricardo III não era corcunda
Descrição real ou uma invenção para prejudicar a reputação do rei inglês? Estudo aos seus restos mortais conclui que tinha realmente um problema nas costas, mas não era uma saliência.
Os resultados da análise aos restos mortais do rei inglês, que tem sido alvo de diversos estudos, incluindo a reconstituição a três dimensões da sua coluna vertebral, confirmam que Ricardo III não era realmente corcunda. Mas sofria de escoliose, um problema médico que provoca a curvatura para o lado da coluna vertebral.
Quando, em 2012, o esqueleto de Ricardo III foi escavado num parque de estacionamento na cidade inglesa de Leicester, constituindo uma das descobertas arqueológicas mais importantes na história recente do país, os cientistas detectaram logo um problema na coluna vertebral que parecia escoliose e que o crânio apresentava uma fissura.
Os investigadores criaram entretanto um modelo 3D em plástico da coluna vertebral do rei, baseando-se em exames de imagiologia aos ossos, e agora apresentam, na revista Lancet, a primeira descrição completa deste problema médico do rei.
“É um típico caso de escoliose idiopática com início na adolescência”, diz um dos autores do estudo, Bruno Morgan, radiologista forense da Universidade de Leicester, referindo-se à forma de escoliose do rei, de causas desconhecidas, e que é uma das mais comuns. Os cientistas pensam assim que a escoliose de Ricardo III não tem uma origem hereditária e que terá surgido depois dos dez anos de idade, refere um comunicado de imprensa da revista.
A coluna vertebral de Ricardo III apresenta uma curva pronunciada para a direita, entre 65 e 85 graus, e está um pouco torcida, o que lhe dá uma forma em espiral. Se fosse hoje, uma pessoa com este problema faria uma cirurgia para o resolver, dizem os investigadores. O seu ombro direito era mais alto do que o esquerdo e o tronco era relativamente pequeno em relação aos membros.
“Shakespeare tinha razão quando disse que o rei tinha uma deformidade na coluna. Mas estava errado quanto à deformidade que tinha. Ele não era corcunda”, referiu o antropólogo Piers Mitchell, da Universidade de Cambridge, que também participou no estudo. “Shakespeare também disse que ele tinha um braço mirrado e que coxeava. Mas olhando para os ossos, é tudo muito simétrico. Não há sinais de um braço mirrado. E as duas pernas estão perfeitamente formadas. Não há sinais de ter sido coxo”, acrescenta Piers Mitchell.
Ricardo III governou Inglaterra durante cerca de dois anos, entre 1483 e 1485, ano em que foi morto aos 32 anos, na Batalha de Bosworth Field, quando lutava para manter a coroa. Os seus restos mortais foram levados para Leicester e sepultados no local onde, em 2012, foram descobertos. Era a igreja de um mosteiro, que mais tarde foi destruída. A sua morte pôs fim à dinastia Plantageneta e conduziu ao poder aos Tudor, com Henrique VII.
“Por outro lado, queremos dizer: ‘Isto está longe de ter sido tão mau como Shakespeare disse que era.’ Mas não queremos dizer que era fácil para alguém ter uma escoliose de 70 graus, porque tinha dores e sentia desconforto”, diz Bruno Morgan. “Mas não há dúvida de que Ricardo III podia vestir a sua armadura e ir para o campo de batalha lutar.”
Na peça de teatro “Ricardo III”, de 1593, Shakespeare caracterizou-o como um tirano corcunda que matou dois príncipes na Torre de Londres e que morreu no campo de batalha, a gritar: “Um cavalo! Um cavalo! O meu reino por um cavalo!” No entanto, os apoiantes de Ricardo III argumentam que a reputação do rei, que é visto como um sanguinário, foi manchada deliberadamente para cimentar o domínio dos Tudor.
Embora Shakespeare nos tenha dado a melhor descrição conhecida de Ricardo III, a verdade é que ela surgiu mais de um século depois da morte do rei. “Era colorida”, diz Piers Mitchell, “mas Shakespeare estava principalmente a escrever uma peça para entreter as pessoas”.