As ciências sociais e humanas na roleta russa com a FCT
O que honra uma instituição pública e a torna idónea são as virtudes simples: do sentido de serviço à comunidade, da decência e da seriedade — tudo virtudes que a FCT não pratica.
O Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS), da Universidade do Minho, viu reprovados os 24 projetos que apresentou a concurso. De igual modo, o centro de comunicação da Universidade da Beira Interior (LabCom.IFP) também viu recusado o financiamento a todos os seus projetos. A FCT cumpriu, deste modo, a segunda fase do desmantelamento das ciências da comunicação em Portugal.
Na primeira fase (dezembro de 2014), havia reduzido as ciências da comunicação a dois centros de investigação financiados, um como Excelente (CECS), outro como Bom (LabCom.IFP). Ao reprovar, agora, todos os projetos destes dois centros, a FCT faz a demonstração exuberante da sua política destrutiva.
Escrevi neste jornal, a 03.02.2014: “um vento ruim levantou-se na Cidade; enquanto durar, serão anos de calamidade”. Outro não foi, aliás, o diagnóstico de Ramada Curto, ao assinalar que o Inverno chegara à investigação das ciências sociais e humanas (CSH) “com a força de uma hecatombe” (02.01.2014). E também Sobrinho Simões (22.11.2013) viu o que está à vista de todos: a FCT fez, com a ciência, “uma espécie de destruição criativa: rebentou com tudo, esperando que, das cinzas, nasça algo de novo”.
Como entender, todavia, que o melhor centro de investigação em ciências da comunicação do país, avaliado como Excelente por investigadores da European Science Foundation, em 2014, tenha todos os seus projetos reprovados para financiamento, à média de 6 pontos em 9? Pode porventura um centro de investigação ser excecional, tendo apenas investigadores medíocres, incapazes de projetar investigação relevante?
No que respeita às CSH, os painéis de avaliação são hoje compostos por investigadores sem competência específica na área que avaliam. Foi assim na recente avaliação dos centros de investigação. Aconteceu a mesma coisa nos sucessivos concursos anuais para bolsas de investigação de topo. E foi também agora, com os projetos de investigação. Acresce ainda o facto de os painéis de avaliação das CSH não incluírem, por regra, investigadores de Comunicação.
Por outro lado, como entender que investigadores estrangeiros tenham a má criação e o desplante de vir a nossa casa, como convidados, avaliar uma equipa de investigação de ciências da comunicação como académicos de “vistas curtas”, quando esta equipa inclui quatro dos seis professores catedráticos do país nesta área, de três universidades diferentes?
E como entender que tais avaliadores possam fazer considerações tão afrontosas sobre os investigadores do CECS: “Tal como referiu um avaliador que serviu, vários anos, na avaliação da FCT, aos concorrentes falta conhecimento da literatura anglo-saxónica”?
Pergunto, ainda, é concebível que um júri de avaliação (um júri de convidados estrangeiros, entenda-se) critique as estratégias de internacionalização da comunidade científica portuguesa, condenando os projetos que escolhem como principais parceiros investigadores do espaço lusófono e ibero-americano, porque “parecem excluir os anglo-saxónicos, principalmente ingleses e americanos”?
Se a FCT recorre apenas a investigadores estrangeiros, fá-lo com encomenda política. E não podem ser investigadores de topo. Pode dar-se o caso, todavia, de a FCT apenas recorrer a investigadores estrangeiros como expediente para legitimar políticas e classificações por si decretadas, contando com o frete político de um conjunto de mandarins da ciência em Portugal. E então, nesse caso, tudo passaria a fazer sentido. Aliás, esta é a hipótese que me parece mais plausível, porque permite explicar as considerações tolas, embora graves e injuriosas, que referi, assim como este inqualificável modo de atuação, que trata os investigadores do CECS como uma indistinta massa de pés descalços, a serem sepultados todos em vala comum.
Apenas assim se compreende que investigadores de obra feita, de grande dimensão internacional, reconhecidos pelos seus pares como os melhores entre os melhores, tanto no espaço anglo-saxónico e francófono, como no espaço lusófono e iberoamericano, sejam tratados como se estivessem a dar os primeiros passos na investigação: “de vistas curtas” e mal informados, dizem; incapazes de formular hipóteses de investigação; sem estratégia científica; equivocados no que toca às escolhas de parceiros internacionais; titubeantes a estabelecer as etapas de investigação; incompetentes a fazer contas…
Alinhados com a FCT, estes mandarins da ciência, investigadores novos ou menos novos, trabalhariam a coberto do anonimato, para condicionar os resultados do concurso, produzindo a argumentação que investigadores estrangeiros depois legitimam e fixando as short lists que determinam os vencedores.
Um tal procedimento da FCT pode comprar a boa vontade dos investigadores estrangeiros, pelo facto de lhes pagar um trabalho que lhes não dá canseira. Mas não passa de um procedimento indecoroso, encapotando as decisões de uma política científica extremista, que ainda por cima abastarda as CSH, avaliando-as em função do dogma da sua ligação ao mercado, ou seja, às empresas e aos negócios.
É deste modo que a FCT prossegue a sua obra de flagelo em devastação, utilizando procedimentos opacos, labirínticos e dissimulados, para desmantelar, do pé para a mão, áreas científicas que demoraram décadas a desenvolver-se.
O que honra uma instituição pública e a torna idónea são as virtudes simples: do sentido de serviço à comunidade, da decência e da seriedade — tudo virtudes que a FCT não pratica.
Mas eu ainda não perdi a esperança de que acabem por lhe rebentar na cabeça as balas da roleta russa com que tem rebentado, a eito, as CSH em Portugal.
Diretor do CECS e presidente da Confederação Iberoamericana das Associações Científicas de Comunicação (Confibercom)