Ambivalências da sociologia portuguesa
A sociologia nasceu no século XIX quando a “questão social” e a miséria da classe operária ameaçavam o capitalismo emergente no mundo ocidental: com Marx, ela quis ser uma ferramenta para “mudar” a sociedade; com Durkheim, um instrumento “terapêutico” para a curar da “anomia” social; e com Weber um meio de compreender a racionalidade das instituições, da economia e dos indivíduos.
A explicação do social através do social é a vocação principal da sociologia, mas como o social tende a insinuar-se nas zonas mais recônditas da estrutura da sociedade, a tarefa de lhe dar visibilidade obriga a romper com as aparências, ou seja, com as ideologias “oficiais” e os estereótipos do senso comum. Mais do que a rutura bachelardiana ou a descoberta da “verdade”, a sua missão é a de fazer com que certos fenómenos da vida social tidos como “naturais” sejam vistos como fruto da própria sociedade e, desse modo, passem a ser questionáveis. A sociedade está em nós e ao mesmo tempo constrói-se e reproduz-se a partir da dinâmica intersubjetiva, o que dá razão a Marcel Proust quando afirmou que “o social é a criação do pensamento dos outros”. Porém, mais do que a simples interação, importa olhar as estruturas. É fundamental entendê-las não enquanto forças deterministas mas enquanto processos com poder de resiliência cuja inércia tende a impor-se aos indivíduos, condicionando a sua consciência e muitas vezes anulando a sua capacidade de ação. É por isso que, olhando as atuais sociedades, cujas relações sociais são estruturadas sob assimetrias de poder e desigualdades tão flagrantes, a objetividade e o rigor teórico e metodológico da sociologia não podem confundir-se com “neutralidade”.
Em Portugal, foi o prof. Adérito Sedas Nunes que fundou a sociologia portuguesa, a partir do ex-GIS/Gabinete de Investigações Sociais (fundado em 1962) e, logo depois, a revista Análise Social (1963), a primeira publicação periódica da nossa sociologia, seguindo-se-lhe, já em 1978, a Revista Crítica de Ciências Sociais, em Coimbra e mais tarde a Sociologia – Problemas e Práticas (1986 – ligada ao ISCTE), ainda hoje consideradas as mais importantes revistas desta área. Só após o período agitado da Revolução dos Cravos é que este campo académico se consolidou e desenvolveu. Depois de ter sido uma ciência “maldita”, tornou-se para alguns sinónimo de “socialismo”. Curiosamente, a primeira geração de sociólogos portugueses não foi licenciada em sociologia. Em muitos casos, a sua formação foi obtida em áreas afins nas universidades europeias na década de 1960, quando Portugal estava ainda mergulhado no obscurantismo e a Europa despertava para as primeiras rebeliões da juventude. Entre as convulsões sociais e a sociologia como ciência sempre existiu uma relação ambivalente: no maio de 68 em Paris a sociologia foi acusada de ter “uma prática racionalista ao serviço de fins burgueses” (Daniel Cohn-Bendit e outros, «Pourquoi des sociologues?»), mas muitos dos que viriam a engrossar a geração seguinte da sociologia também passaram pelos campi de Nanterre e da Sorbonne.
Estima-se que existam, hoje em dia, cerca de 30 mil sociólogos em Portugal, saídos dos cursos que entretanto floresceram no país (Lisboa, Porto, Coimbra, Évora, Braga, Covilhã, Faro), a maioria deles licenciados na última década. Segundo um inquérito recente realizado pela APS – Associação Portuguesa de Sociologia, 86,6% dos licenciados estão empregados e 63,8% deles consideram que a sua formação é adequada às tarefas que desempenham. No entanto, os setores que mais absorvem sociólogos inserem-se na área das políticas públicas (educação, investigação, administração pública e Segurança Social), enquanto a componente de mercado é ainda praticamente residual, o que é bem revelador da fraca sensibilidade do tecido empresarial para contratar sociólogos. Os municípios, o ensino e formação, e o campo associativo e do desenvolvimento local absorvem o que resta da atividade da sociologia portuguesa, na vertente “técnica” ou profissional.
Talvez a própria sociologia pudesse ter feito mais pelo seu reconhecimento no plano profissional, mas aí reside outra das suas ambivalências, ou seja, o facto de ela continuar, quase duzentos anos depois, a querer, por um lado, agir no seio das instituições para “olear” o sistema e, por outro lado, a participar da dinâmica da sociedade civil e a acompanhar os movimentos e as forças que denunciam os poderes e as iniquidades da estrutura social no seu conjunto. Sempre que as rebeliões sociais e a conflitualidade “aquecem” a sociedade, a sociologia debate-se com o dilema entre “aperfeiçoar” a “ordem” ou estimular a mudança radical. O conhecimento do social pode, portanto, ser mais instrumental ou mais reflexivo; e, dependendo do cruzamento entre eles e os tipos de público a que se dirigem (académico ou extra-académico), assim a sociologia será mais funcionalista ou mais crítica, mais virada para as instituições, para si própria ou para uma sociologia pública dirigida aos cidadãos e aos grupos subalternos.
Num momento em que as instituições voltaram a bloquear e a sociedade volta a dar sinais de “anomia”, quando o sistema capitalista exibe de novo a sua vocação mais desumana – cujo efeito é uma nova barbárie que está a esgaçar o tecido social e a arruinar a coesão, construída, a custo, na segunda metade do século passado –, precisamos de decidir, enquanto sociólogos, se ainda há espaço para a “reforma” deste sistema, ou se devemos reinventar uma teoria crítica que promova novas utopias e ajude a abrir caminhos alternativos ao atual modelo de “sociedade ocidental”.
Professor da Faculdade de Economia e investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra