A ciência em Portugal é de todos: hoje um, amanhã 500.000

Todo o país se apercebeu de que a ciência foi uma área em que Portugal se afirmou com alguma qualidade nos últimos 30 anos da liberdade de perguntar, duvidar, aprender e poder demonstrar. Esperávamos, todos, cientistas ou não, que com esta presidência da FCT se entrasse numa fase de consolidação dessa qualidade.

2014

Janeiro de 2014 brindou-nos com um alvoroço que transbordou para fora da comunidade de cientistas para todo o país. Domingo, 19 de Janeiro, os portugueses acordariam para uma realidade inescapável do estado da ciência no país, através de uma série de artigos e entrevistas publicados no jornal PÚBLICO com a revelação também inescapável da personalidade do homem ao leme da FCT, Miguel Seabra, um investigador português que tinha acabado de publicar um artigo de investigação clínica na revista The Lancet com um grupo de investigadores ingleses (MacLaren et al., 2014).

Cortes no número de bolsas individuais de doutoramento e pós-doutoramento fazendo em tudo lembrar os cortes que afligem as reformas, com algumas semelhanças e uma importante diferença. As semelhanças estão na origem: o Governo. A diferença reside no facto de que os reformados só têm como representação a indignação e o protesto e os cientistas nos últimos 30 anos sabiam que tinham na FCT e nos seus presidentes homens, cientistas como eles, que asseguravam uma política de investigação científica digna do país que passámos a ser.

Seabra, como presidente da FCT, numa resposta (im)pensada a uma pergunta de uma jornalista deste jornal sobre as críticas feitas por Sobrinho Simões, um investigador português sénior a trabalhar em Portugal, desvaloriza-as dizendo: “Está a falar de uma pessoa entre 50 mil [o número de cientistas em Portugal].”

Com essa resposta, Seabra pareceu esquecer-se de que a grande maioria dos referidos 50.000 são jovens investigadores nos seus trinta e tal, quarenta anos, casados ou não, com filhos ou não, mas com pais (x2), avós (x4), tios e em geral numerosos primos, primas, amigos e irmãos, representando facilmente agregados familiares/sociais com mais de 10 membros. A resposta portanto mais correcta seria: “Está a falar de uma pessoa atenta ao que está a preocupar pelo menos 500.000.”

Quinhentos mil portugueses que percebem claramente que o desemprego não é a consequência de uma política científica inexplicada ou discutida com a comunidade científica, como tão bem assinalado por Graça Carvalho, mas consequência da política de austeridade imposta e seguida. Uma política que tira poder de compra às reformas dos avós e os obriga a pensar com apreensão no futuro em Portugal dos seus filhos e netos, contribuindo assim para a paralisação da economia e, mais uma vez, forçando a emigração de quadros preciosos para Portugal.

Foi portanto com pesar que ouvimos um presidente da FCT minimizar, com a arrogância que não esperamos de um bom investigador, a onda de preocupação que tem invadido não só membros da comunidade científica de todas as idades, mas o país.

Desde o motorista de táxi orgulhoso de ver o seu filho ou filha licenciado e a fazer um mestrado, ao professor do ensino secundário apreensivo sobre o futuro do seu filho que acabou de fazer o seu doutoramento, aos pais do investigador FCT de trinta e tal anos que não sabem o que irá acontecer ao filho, filha, nora ou genro e netos daqui a cinco anos, todo o país se apercebeu de que a ciência foi uma área em que Portugal se afirmou com alguma qualidade nos últimos 30 anos da liberdade de perguntar, duvidar, aprender e poder demonstrar. Esperávamos, todos, cientistas ou não, que com esta presidência da FCT se entrasse numa fase de consolidação dessa qualidade.

Sob a capa de pretender querer premiar a excelência de alguns, de querer estimular a participação empresarial num domínio da responsabilidade da Universidade, pode romper-se o tecido que a muito custo se conseguiu tecer do qual vieram a sair investigadores FCT, presidentes da FCT, recipientes de grandes bolsas ERC [Conselho Europeu de Investigação], directores de grupo dentro e fora do país, directores de grandes institutos de investigação no país, professores universitários dentro e fora do país, jovens gestores de novas empresas, etc.

Nestes últimos meses, dias e entrevistas, Seabra parece-nos ter revelado a sua insuficiência como representante dos investigadores portugueses, demonstrando quase ao mesmo tempo, por pura coincidência, as suas qualidades de investigador. O que lamentamos, porque acreditámos que o cientista Seabra estaria à altura do que lhe era pedido como gestor de política científica quando tomou posse do lugar.

O número de grandes investigadores que conseguiram conciliar as suas qualidades de investigador com a qualidade de grandes administradores de política científica é, na minha experiência em vários países, muito pequeno. Tem, no entanto, revelado homens e mulheres que nunca desvalorizaram ou pretenderam minimizar publicamente a crítica livre de colegas que deveriam ouvir com atenção, provando ser capazes de negociar com as respectivas tutelas os interesses dos investigadores que representam. Mesmo relativamente surdas, tutelas como a nossa nesta hora.


Cientista e professora emérita da Universidade do Porto
 
 
 
 
 
 

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