Loureiro dos Santos: ministros passaram a ser "caixa de correio" de Vítor Gaspar

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"Está criada uma situação de grande desequilíbrio psicológico nas Forças Armadas" Foto: Nuno Ferreira Santos

O general Loureiro dos Santos, que passou pelo Estado-Maior do Exército, foi membro do Conselho da Revolução e ministro da Defesa Nacional, juntou esta semana mais um livro aos 15 publicados sobre estratégia, segurança e defesa, História e relações internacionais. A obra As Forças Armadas em Portugal responde a questões como a justificação da existência das Forças Armadas, como são e se estruturam, que efectivos têm e quanto gastam.

O livro agora lançado tem um forte pendor pedagógico. As Forças Armadas (FA) precisam desse esforço para atrair jovens para as fileiras. Julga que esse esforço está a ser bem sucedido?

Não é suficiente. As Forças Armadas têm de atrair jovens, mas não só. Uma das coisas que têm de se fazer é a pedagogia para o interesse e importância das FA. Isso deve ser dinamizado pelo Governo, embora os militares devam também abrir os quartéis.

Como é que se poderia melhorar o conhecimento das FA por parte dos portugueses?

Eu explico isso no livro. Há duas formas. Uma é através do estabelecimento de um serviço cívico nacional. Seria uma forma de fazer os jovens contactarem com instituições públicas ou privadas que implicassem o espírito de missão, solidariedade, a disciplina, o valor da autoridade, a persistência na acção. Todos esses valores que, de certa maneira, o Serviço Militar Obrigatório dava, mas que hoje em dia um jovem entra na vida sem ter uma preparação desse tipo... Esse serviço cívico - que, aliás, existe nos países nórdicos - iniciar-se-ia por uma semana para toda a gente nas FA, e depois os jovens escolheriam a área onde passariam seis ou oito meses. Áreas como a protecção civil, segurança do património, segurança social, saúde... Áreas onde seria possível a juventude entrar em contacto com determinado tipo de comportamentos que dependem muito dos valores éticos.

E a outra?

Seria utilizar a metodologia dos americanos para a preparação de reservistas, oficiais e sargentos. Era uma forma de dar a conhecer aos cidadãos - especialmente aos quadros - a realidade militar e de forma a que tirassem proveito disso.

De forma voluntária?

Tudo voluntário! Os americanos pagam o curso numa universidade e vão a determinados quartéis receber formação durante dois dias por semana. E depois comprometem-se a fazer uns exercícios por ano. Esse pessoal acaba por fazer parte das brigadas nacionais, que trabalham, por princípio, nos estados, em situações de catástrofe. E, em caso de grande dificuldade, podem combater. Isso aconteceu no Iraque e Afeganistão. Permite criar a possibilidade de uma osmose entre militares e civis. E isto tinha outra vantagem: em determinadas circunstâncias nós poderíamos ter nas FA menos quadros, sabendo que, caso fosse necessário, podíamos chamar os reservistas.

Em termos financeiros, e na situação em que o país está, essas propostas são exequíveis?

Apesar de tudo acho que sim. Estas medidas são de fôlego, a prazo... Mas tinham uma vantagem adicional: poderia mitigar ou facilitar a resolução do problema do desemprego, nomeadamente o desemprego jovem. Olhe-se para estes jovens que estão a abandonar a universidade por não ter recursos... Se abríssemos a possibilidade de continuar na universidade e ser reservista, essa pessoa tinha formação, um trabalho, com a vantagem de ficar a conhecer as FA e de as poder servir no futuro.

O Governo está agora a completar um ano de actividade. Qual é a avaliação que faz da actuação do executivo na Defesa?

De 0 a 20, dou 10. Nota positiva, mas mínima. Eu acho que há preocupação dos governantes ligados à Defesa em resolver os problemas. Mas as dificuldades são tantas que não conseguiram encontrar ainda um sistema de resolução de problemas. Há muito que o problema foi detectado, isto é, as chefias apresentam os problemas, propõem soluções, mas depois as coisas emperram... A ideia que dá é que o Ministério das Finanças estabelece um sistema de controlo de custos, dos orçamentos. Antes, quando se aprovava um Orçamento do Estado, cada ministro era responsável pelo seu orçamento. Quando era preciso fazer alguma coisa, o ministro cingia-se ao seu orçamento. Agora já não é assim! E isso cria uma atrição enorme. Eu penso que o ministro das Finanças está convencido que assim gasta menos. Para se conseguir contratar alguém, tem que se ir ao ministério das Finanças. Os ministros, incluindo o da Defesa, passaram a ser uma caixa de correio para pôr a funcionar o seu ministério. Para se fazer alguma coisa no Exército, o chefe de Estado tem de propor ao ministro. Mas o ministro também não tem autonomia. Tem de pedir ao ministro das Finanças. O que é que acontece? Claro que não é o ministro das Finanças, é um funcionário de quinta ordem nas Finanças que vai decidir se uma determinada questão, que está autorizada e orçamentada, vai ser posta em execução pelo ministro da Defesa! É uma coisa que não lembra... Enfim, não digo mais nada para não dizer uma asneira!

O ministro das Finanças não confia nos outros ministros...

Exacto. E isto acaba por se repercutir no funcionamento das FA. Por exemplo, na questão das promoções. O cancelamento das promoções foi feito no anterior orçamento de 2011. Quando se parou com as promoções, foi no entendimento de que a promoção se limitava a um aumento de vencimento. Mas não é só isso. Também é colocar nos lugares pessoas que têm uma certa formação e certas capacidades e, portanto, necessitam de ter uma certa autoridade. O Governo percebeu isso, mas isto já se passou há não sei quanto tempo e ainda não aconteceu nada. É claro que a situação gera grande insatisfação.

E o problema do complemento das pensões também gera insatisfação...

Esse é um problema extremamente grave. Porque ninguém percebe que os militares, depois de descontarem para o fundo de pensões, tenham que suportar estas falhas. E que haja uma lei que permite e dá aos magistrados a manutenção de 100 por cento do vencimento no activo. E os militares descontaram durante anos para garantir 80 por cento do vencimento no activo. Não há nenhum militar que perceba porque é que os magistrados têm esse direito. Qual a diferença?... A função de magistrado é mais importante? Mesmo que seja, e os riscos? Quem é que corre mais riscos? E quem é que tem mais direitos restringidos? E essa limitação está a atingir uma geração que fez a guerra, fez sacrifícios e que ainda por cima estabeleceu a democracia! É uma geração de militares que não digo que deva ser privilegiada, mas pelo menos que cumpram aquilo que está determinado! Os reformados estão muito preocupados e isso está a repercutir-se nos militares no activo porque começam a pensar: "Bem, prometem-nos mas não há garantia que amanhã não nos aconteça o mesmo." Está aqui criada uma situação de grande desequilíbrio psicológico nas FA.

Os cortes aplicados já estão a afectar a operacionalidade das FA?

Não sei responder a isso. Acho que ainda não está, as missões estão a ser feitas. Agora, há pequenas grandes coisas que têm consequências a médio prazo. Exemplo: o facto de os pilotos terem reduzido as horas de voo e assim perderem certificações que são necessárias. Se essa situação se mantém, corre-se o risco de não termos oficiais em condições para pilotar os aviões. Há uma série de pilotos que deixaram de voar. Mesmo o dia-a-dia nos quartéis, hoje em dia, é complicadíssimo. Em algumas unidades, o comandante já quase não utiliza o carro de serviço, não usa o telemóvel de serviço, usa o dele, o aquecimento é restringido e, muitas vezes, era bom ter água quente para tomar banho, mas não há...

Mas já se chegou ao ponto de não haver água quente para tomar banho?

Por exemplo, ou se toma num determinado tempo em que o aquecimento está a funcionar ou então, fora desse tempo, já não há. Nas unidades do interior, aquilo é usado em situação extrema. Isso provoca desgaste.

As associações profissionais têm canalizado essa insatisfação, com o ministro a acusar os seus responsáveis de fazerem política. As associações devem existir ou não?

São muito importantes. Hoje em dia, no ambiente em que vivemos, é muito importante a percepção da opinião pública sobre determinadas situações. Isso também sustenta as Forças Armadas. É importante que haja alguém que, no âmbito da opinião pública, faça uma certa pedagogia dos direitos dos militares. Mas a gestão do comportamento das associações não é fácil. Muitas vezes, certas reivindicações podem ser confundidas com reivindicações invocadas por partidos políticos. Uma das preocupações que devem ter é o estilo reivindicativo, de apresentação pedagógica dos problemas dos seus associados, diferente dos partidos e centrais sindicais. Porque senão quase se confunde uma associação que faz manifestações, vigílias. E, às vezes, até parece que os timings parecem articulados. Isso é um erro que as associações têm cometido. A solução passa por ter a preocupação de um estilo sóbrio, ético. Os militares têm de ser vistos tal como a população acha que devem ser: cumpridores, respeitadores. Com perfil de gente aprumada. Há expressões e formas de criticar o primeiro-ministro e o Presidente da República que os militares não devem usar.

Mas o Presidente, enquanto comandante supremo, não podia ter-se reunido com as associações? Elas queixam-se de ele nunca as ter recebido.

O Presidente da República, pelo menos através do seu chefe da Casa Militar, seria útil para ele, ouvi-los. Seria útil para ele, até porque seria mais uma fonte de informação. Admito que por feitio... ele é uma pessoa um pouco fechada para ter um diálogo mais aberto. Eu acredito que esteja tão informado quanto estaria se recebesse as associações, mas há também o acto simbólico...

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