Biblioteca Municipal de Lagoa: Entre a biblioteca dos “grandes” e dos “pequenos”
Explico que tinha um compromisso dali a dez minutos na “biblioteca dos grandes” e despeço-me do meu novo amigo de 11 anos com um aperto de dedos entre o gradeamento.
“Tenho hoje por assente que a verdade não é sempre uma coisa boa. Se assim fosse, não haveria quem vivesse infeliz com a verdade, nem quem fosse feliz com a mentira.”
Helena Tapadinhas, Bairro Cru
Por aselhice, distração ou outra razão qualquer, não encontrei a Biblioteca Municipal de Lagoa à primeira. Meti-me por uma rua de sentido único, depois por outra, e acabei por ir parar em frente a uma escola básica. Quando passava, uma bola voou por cima do gradeamento. Estacionei e fui apanhá-la.
— Senhor! Senhor! Atire para aqui, se faz favor —, gritam dois miúdos agarrados à vedação.
— Calma, eu levo-a aí, mas só a devolvo se me ajudarem —, digo-lhes.
— Pode ser! —, responde um deles, enquanto o outro, desconfiado, alternava o olhar entre mim e a bola.
— Onde é a Biblioteca municipal?
— Não sei —, respondem em coro.
— OK. E costumam ler?
— Eu não! —, despacha Tomás, o desconfiado, afastando-se.
— Eu li um livro que se chama Rita, Manel e o Peixe Mágico, que cheirava a baunilha. E também li O Rapaz e o Robô. Se o senhor quiser ler o livro com cheiro de baunilha, eu levo-o à biblioteca da escola. Não sei se há esse livro na biblioteca dos grandes —, refere Gabriel.
Sou de lágrima fácil e gaguejo na resposta. Explico que tinha um compromisso dali a dez minutos na “biblioteca dos grandes” e despeço-me do meu novo amigo de 11 anos com um aperto de dedos entre o gradeamento.
Faria todo o sentido que Gabriel e Tomás soubessem onde se situa a Biblioteca Municipal de Lagoa. “Fazemos diversas atividades para as crianças e para os pais das crianças, quer aqui, quer nas escolas, como pequenos teatros e uma série de outras coisas com o intuito de promover o livro e a leitura, mas é uma tarefa difícil”, introduziu Clara Andrade, diretora da biblioteca, no início da visita guiada.
No átrio, destacava-se uma belíssima exposição de pintura intitulada “Como um pássaro que saiu da gaiola”, sobre os 50 anos do 25 de Abril e a Liberdade, autoria de Patico (pseudónimo de Francisco Alberto). Trabalhador autárquico há três décadas, Patico dedicou muitos anos ao projeto Escola de Artes Mestre Fernando Rodrigues, assim chamado em homenagem ao Mestre Oleiro sobre o qual Helena Tapadinhas escreveu uma biografia ficcionada intitulada Barro Cru.
O livro revela-nos o quotidiano dos lagoenses e convida-nos, através da personagem do Mestre Oleiro, a viajar por Lagoa de forma não turística, mas intencionalmente “questionante dos preconceitos, verdades feitas, sonolência e apatia de um espírito que livremente olha com ‘olhos de ver’ o mundo à volta”, como assina no prefácio Luís António Alves Encarnação, presidente da Câmara Municipal de Lagoa.
Um exemplo desse olhar com “olhos de ver”: “O mercado criou condições para o consumo de um fim de semana em Londres ou em Nova lorque se transformar numa mera questão de disponibilidade de voo, pois é mais barato ir de avião a Helsínquia que de carro à capital. A ementa da sobremesa do almoço deixou de estar confinada à generosidade das figueiras do quintal ou das laranjeiras do vizinho. Assim o permita a carteira e pode-se optar entre mangas vindas do Brasil e uvas da África do Sul, com mais facilidade e a melhor preço do que se encontra ameixas de Estremoz ou cerejas da Cova da Beira.”
“Esta biblioteca tem uma história muito peculiar, porque isto inicialmente era um cemitério e depois passou a ser o teatro municipal, que nunca chegou a sê-lo devido ao profundo desagrado da população que não aceitou a edificação de um teatro, espaço profano destinado a espetáculos, sobre o lugar santo do antigo cemitério”, explicou-me Clara.
Em 1992, a Câmara Municipal de Lagoa e o Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro acordaram a construção de uma nova biblioteca neste mesmo edifício. “Foi inaugurada a 23 setembro de 1997, funciona tudo muito bem e temos fantasmas”, acrescenta Clara. A sério? Está assombrada?, perguntei. “Estou a brincar. Dizemos isto porque quando fizeram as obras levantaram muitas ossadas e nós brincamos com isso”, esclareceu a diretora, outrora professora de Filosofia. “Trabalho na biblioteca há 29 anos. Foi um acaso que se tornou numa paixão. Agora, querem professores e não há, quando eu era professora havia demais e estavam a tentar tirar-nos de lá. Nessa altura, fiz uma pós-graduação em Ciências Documentais e vim para aqui, onde procuramos fazer uma programação que suba os níveis de leitura e que informe as pessoas, nomeadamente com conferências e tertúlias. Agora, por exemplo, temos um conjunto de conferências sobre ervanária e outro sobre a história do Algarve relacionada com o 25 de Abril. Há imensos algarvios que foram presos e que fizeram muito pelo 25 de Abril.”
Barro cru retrata essa realidade: “O corcunda era conhecido pelo zelo com que reportava aos pides citadinos as heterodoxias, reais ou imaginárias, dos autóctones. Circulava de tasca em tasca, de café em café, demorava-se nas mercearias ou entre as bancas do mercado, sempre com o ouvido de tísico sintonizado nos detonadores pavlovianos em que fora treinado. Frases onde ouvisse palavras como ‘sem trabalho’, ‘mal pago’, ‘falta de pão’, ‘carestia’, bastavam para o fazer salivar. Anotava mentalmente a fonte e passava a dedicar-lhe especial atenção (…)
– Esta senhora devia ter mais cuidado com o que diz…
Mas não teve tempo de acabar a frase. O estaladão que levou deixou-o a ouvir mal do lado direito durante mais de quinze dias. A minha mãe tinha mão pesada e chapada fácil.”
Miguel Boto, responsável pela sala multimédia, falou-me sobre a orgânica do espaço onde trabalha: “Os computadores são, em primeiro lugar, para fazer trabalhos da escola, mas se houver computadores disponíveis e alguém quiser jogar um joguinho, pode fazê-lo. Os jovens vêm muito para aqui, às vezes até mais para fazer sala e para os namoricos próprios da idade, e claro, porque temos Wi-Fi gratuito. Mas vem gente de todas as idades e nós ajudamos as pessoas menos habituadas a estas coisas da informática a fazerem o que precisam, como currículos, impressões, consultar as páginas da Segurança Social e das Finanças.”
Muitas das páginas de Barro cru são abertamente críticas do sistema de ensino. A dada altura, Helena Tapadinhas serve-se de João Riscado, um dos protagonistas, e de Suzana, a namorada, para denunciar o desfasamento entre aquilo que a escola pretendia ensinar e as coisas do quotidiano da vida tal como ela é: “Estes dois saltaram fora da fornada e foram deixar-se cozer pela vida. Como criticá-los, se a escola parece uma fábrica de barro cru? Nada do que dali sai está pronto para usar. Mesmo aqueles que aparentam passar sem defeito pela chacota soam quase sempre a oco ao toque.”
Estou no final da visita guiada à Biblioteca Municipal de Lagoa e paro junto a uma inscrição na parede: “Os livros não mudam o mundo. Os livros mudam as pessoas e as pessoas mudam o mundo.”
— O que nos podem dar os livros, Clara?
— Os livros podem dar-nos muito, desenvolver-nos as capacidades, a compreensão, a imaginação… Num livro, imaginamos tudo, desde as personagens, como são física e psicologicamente, até às paisagens, ambiente, tudo. E o livro também nos dá conhecimento. Uma pessoa que lê sabe mais. Mas muito importante é também o gozo de ler, de ficar encantado e deliciado. É o prazer que nos faz aderir à leitura. Sem prazer, aborrecemo-nos depressa. E é isto que temos de desenvolver nas crianças e jovens. Quando descobrem o prazer de ler, aderem. Quando gostamos de ler, nunca estamos sozinhos e às vezes até conseguimos olhar para os nossos problemas e dizer-lhes: ‘Agora esperem um bocadinho que eu estou a ler.’
“Mas há dias em que o sorriso floresce até nos campos alagados pelas lágrimas dos olhos”, escreve Clara Andrade, em Areia.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990