Como será o futuro da sardinha? Sustentável e de aquicultura
A pesca da espécie em Portugal é sustentável e o sector quer ver isto valorizado. Com os santos populares à porta, o amor à sardinha não abranda e vai-se temperando com novos sabores.
Com orgulho e algum saudosismo, Agostinho Sá Pereira conta que Matosinhos foi o maior porto sardinheiro do mundo. É o presidente do Núcleo de Amigos dos Pescadores de Matosinhos (Napesmate), onde as fotografias dos anos de 1940 e 1960 expostas mostram uma mistura de abundância de sardinha e pobreza. Esta pesca moldou a vida destes pescadores e desta cidade e Delfim Caetano Nora, que na mesma associação se dedica a escrever a história das famílias de pescadores, explica: “É preciso separar bem o que era o defeso e o que era a safra. A safra é uma sardinha em cada um de nós, as pessoas andam de cabeça no ar, uma alegria. No defeso andava tudo calado, com fome.”
Ainda os santos populares de Junho não acenderam grelhas e já o Senhor de Matosinhos assa as primeiras sardinhas do ano, ainda pouco gordas, para as festas da cidade. Deixou de ser o maior do mundo, mas continua a ser o maior porto sardinheiro português — em 2022, entraram aqui mais de seis mil toneladas de sardinha. Já foi sinónimo de pobreza e hoje está em todas as mesas como prato nacional. Enquanto o apetite dos portugueses pela sardinha continua bem vivo, o futuro da sardinha em Portugal passa por novas formas de a provar, por uma pesca sustentável e até pela aquicultura.
A saúde dos cardumes de sardinha em toda a costa ibérica preocupou governantes, cientistas e pescadores entre os anos 2006 e 2017 — em 2015, um dos piores anos, pescaram-se 13.600 toneladas. Foi o cúmulo de ciclos de sobrepesca: as capturas dos anos 1980 e 1990 ultrapassavam facilmente as 90 mil toneladas, segundo dados reunidos no estudo O valor económico, social e cultural da sardinha, publicado em 2023 pelo projecto Sardina2020. Em 2011, a sardinha representava 75% do valor da pesca de cerco em Portugal; hoje representa 20% a 30%.
A pesca não é uma ameaça
A partir de 2015, além da aposta em investigação científica, medidas com o aumento do defeso ou a redução dos limites de capturas diárias foram duras. Hoje, Portugal e Espanha fazem uma gestão conjunta desta pesca de cerco com quotas de captura definidas ano a ano, mas estabilizadas: em 2024, Portugal poderá capturar 29.560 toneladas. “A última avaliação do estado do stock, realizada em Novembro de 2023, indica que a biomassa do stock se encontra estável”, diz ao PÚBLICO Susana Garrido, investigadora do Instituto do Mar e da Atmosfera (IPMA), que avalia o estado das espécies na costa nacional.
O esforço deu frutos, os dados mostram que a pesca ibérica da sardinha está dentro dos limites da sustentabilidade. A ciência avança para perceber que outros factores fazem oscilar a quantidade de sardinha nos mares. “A sobrevivência dos primeiros estádios de vida depende fortemente de condições ambientais, como temperatura da água, disponibilidade de alimento, predadores. Num contexto de alterações climáticas, é particularmente importante continuar a investigar quais os factores-chave que afectam o recrutamento, para melhor gerir estas pescarias”, explica Susana Garrido, acrescentando que projectos de investigação como o Sardinha2030 querem responder a esta questão.
A gestão da pesca da sardinha está na base da candidatura da sardinha ibérica ao selo MSC, do Marine Stewardship Council, que certifica em todo o mundo a pesca selvagem, rastreável e sustentável. A iniciativa desta candidatura é de organizações de pesca de cerco de Portugal — a Associação Nacional das Organizações de Produtores da Pesca do Cerco (Anopcerco) — e de Espanha e promete aumentar o valor deste peixe no mercado internacional.
Outra solução para aliviar a pressão do consumo sobre o mar é a aquicultura. Com um baixo valor económico, a sardinha não foi, como a dourada ou o robalo, um peixe que estimulasse investigação nesta área. O caso mudou em 2005, quando a Estação Piloto de Piscicultura de Olhão (EPPO) iniciou um projecto com sardinhas. “Temos três gerações criadas no EPPO e só os avós é que conheceram o mar”, conta Pedro Pousão, investigador do IPMA e coordenador responsável pela EPPO.
Próximo passo: padronizar
Para Pedro Pousão, a pertinência da aquicultura está na tendência mundial para aumentar o consumo de proteína animal e, “seguindo o exemplo de outras culturas, se queremos peixe vamos ter de produzi-lo”. Nestes tanques de peixe em Olhão, o estudo da adaptabilidade das espécies ao cativeiro é feito com o olhar na indústria e no consumidor. Em duas provas cegas já feitas, os olhanenses convidados disseram que as sardinhas do EPPO são boas, mas demasiado gordas, o que se explica pela alimentação. Na hora da refeição, vem o cardume à tona e quase saltam de excitação para comer ração para douradas adaptada à sardinha. Criar uma ração específica para sardinhas é um dos objectivos da próxima fase do projecto.
“Não é que vamos produzir sardinha para o São João”, avisa o investigador. No entanto, a sardinha de aquicultura pode, em breve, substituir a do mar na indústria conserveira, “até porque preferem que o peixe tenha todo o mesmo calibre, por exemplo”. Pedro Pousão quer ouvir as necessidades das conserveiras e padronizar, em escala, o crescimento deste peixe.
As conserveiras são um dos grandes clientes da sardinha e os anos de crise deste peixe mostram que houve a necessidade de aumentar a importação, que actualmente continua a variar com as quotas atribuídas à pesca nacional, mas não chega aos 50%, segundo a Associação Nacional dos Industriais de Conservas de Peixe (ANICP). “Esse valor tenderá a diminuir significativamente quando a sardinha portuguesa conseguir recuperar a certificação MSC, porque existe uma enorme procura no mercado internacional desta sardinha certificada”, diz Marta Azevedo, directora de marca e comunicação da ANICP.
Além da importação, as conserveiras portuguesas apostam na diversificação de peixes, moluscos e crustáceos em conservas e nas receitas. Marta Azevedo reforça que há, na indústria portuguesa, “32 espécies diferentes de peixe em conservas e que esta diversidade, conjugada com diferentes molhos e coberturas, resulta em cerca de 800 referências em conserva”. Tudo isto faz parte de um movimento de dignificação das conservas e que as distancia da ideia de “comida de guerra”.
Rodrigo Souza percebeu o potencial das latas de sardinha há pouco mais de dez anos, quando a Conservas Portugal Norte (CPN) fez uma edição comemorativa dos 100 anos da fábrica, com um produto seleccionado e de visual refrescado. As reacções surpreenderam e desde então, como outras conserveiras, a CPN tem apostado em embalagens embrulhadas à mão, rótulos de design evocativo da sua história e receitas originais para as suas marcas Inês, Porthos ou Dama. “As conservas são difíceis de vender porque a lata está sempre fechada. É preciso investir em comunicação, em provas, harmonizações com vinhos para valorizar o produto”, explica Rodrigo Souza, administrador e terceira geração na CPN, depois de o avô, matosinhense, ter comprado a histórica fábrica nos anos 1960.
Assada, em conserva, oriental
“Para os portugueses, a sardinha sempre foi a conserva nacional. Apesar de o mercado consumir muito atum [representa 34% da produção da indústria], nós continuamos focados na sardinha, 60% da CPN é sardinha”, continua Rodrigo Souza, mostrando que diversificar o produto é a melhor táctica. “Temos o pior fornecedor: o mar. Por isso, se vem sardinha magra, produzimos mais da nossa linha de supermercado; se vem gorda, vamos produzir a nossa linha gourmet.”
Além do tradicional azeite ou molho de tomate, as sardinhas acompanham-se de produtos biológicos, algas ou ervas aromáticas. No seu catálogo há um novo fenómeno: a sardinha em molho teriyaki.
Em Lisboa, outro cruzamento da sardinha com o oriente fez sucesso na última década: um filete por cima de arroz de sushi. Filipe Rodrigues fez o seu primeiro nigiri de sardinha em 2007, quando a junção de ideias portuguesas à tradição japonesa não era muito bem vista, diz. No Origami (actual Arigato), primeiro restaurante onde trabalhou como chef, lembrou-se de repousar quatro lombinhos de sardinha sobre bolas de arroz e, para que a gordura ficasse mais palatável, aqueceu-os com o maçarico. “Ia testar com o pessoal, mas ninguém comeu, não consegui chegar ao pé deles, tive de comer os quatro”, ri-se.
Passou por restaurantes como o Sea Me, onde a peça de sushi ganhou fama, e é agora dono da Taberna do Mar, onde o nigiri de sardinha é o último momento do menu de degustação, antes da sobremesa. O doce é o pudim abade de Santo António, em que se substitui o toucinho do abade de Priscos por uma suave extracção feita com as espinhas da sardinha — uma brincadeira que acrescenta untuosidade e salgado e deixa água na boca. “Há clientes que, depois da sobremesa, ainda pedem outro nigiri. Comer só um é crime, têm de ser dois. O primeiro dá um impacto na boca e o segundo é para realmente comer”, conta Filipe Rodrigues, que pede ao seu fornecedor que congele sardinhas quando estão no auge da gordura, no início do Outono, para usar no defeso. Neste restaurante de 37 metros quadrados usa mais de duas toneladas por ano.
O tal impacto ao comer o primeiro nigiri é a confusão mental de quando se prova algo tão original como estranhamente tradicional. “O nigiri de sardinha resume todo o meu percurso. Comecei em restaurantes de sardinha assada em Portimão e cresci até me especializar em cozinha japonesa”, reflecte Filipe. É a síntese de um peixe com muita história a imaginar o futuro.