Marta Temido defende Marcelo e diz que lei obrigava SNS a tratar gémeas luso-brasileiras

Ex-ministra da Saúde fala pela primeira vez sobre o polémico caso de duas crianças luso-brasileiras que vieram a Portugal para receber tratamento para atrofia muscular espinhal

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Marta Temido, deputada do PS e ex-ministra da Saúde, estranha algumas declarações dos médicos sobre o caso das gémeas luso-brasileiras, dizendo ser claro que à luz da lei aquelas crianças teriam que receber tratamento médico mesmo não morando em Portugal. Em entrevista ao PÚBLICO-Renascença, explica que Marcelo Rebelo de Sousa reencaminhou para o Governo mais casos do que aqueles dois e que isso foi sempre o procedimento “habitual”. Pode ouvir esta entrevista na Renascença esta quinta-feira depois das 23 horas.

Como é que foi o seu envolvimento como ministra da Saúde no caso das crianças gémeas com atrofia muscular espinhal que terão tido um tratamento de favor no Hospital de Santa Maria?
Antes de mais, dizer duas coisas: não tive qualquer contacto com o Presidente da República relativamente a este caso, nem dei qualquer orientação sobre o tratamento destas crianças. Quando o caso foi relatado na comunicação social, há algumas semanas, eu referi que tinha uma ideia do caso, da referência às duas.

Mas como é que soube do caso quando era ministra?
Não soube quando era ministra. A referência que eu tinha de memória era da situação e não do tratamento específico em concreto.

Disse à TVI que se lembrava de duas gémeas e que achava que o tratamento não tinha prosseguido.
Mas era uma ideia apenas de memória que tinha do tema, de existirem duas gémeas.

Eram outras gémeas?
Não tenho a certeza se eram estas ou outras.

O caso concreto só ficou a saber pela reportagem da TVI?
O caso concreto não lhe posso dizer que na altura não tenha havido um contacto sobre o caso. O que posso dizer é que eu tive necessidade de ir refazer o circuito documental daquilo que me poderia ter passado pelas mãos.

E o que é que descobriu?
Pedi acesso formalmente aos documentos administrativos, ao abrigo do direito à informação, ao Ministério da Saúde. Apurei que o pedido de verificação do que se passava com este caso entrou no Ministério da Saúde junto com outros pedidos. É o circuito normal. Quando um cidadão apresenta uma reclamação a uma entidade, quer seja ao Presidente da República, ao gabinete de um ministro, até aos deputados, há um circuito predefinido. Normalmente, dá-se a entrada desse pedido. Foi o que o Ministério da Saúde fez a esse documento que vinha do gabinete do primeiro-ministro e que canalizava um documento da Casa Civil da Presidência da República. Esse documento é aquilo que já tem sido referido da comunicação social.

Um relatório médico?
Não é um relatório médico, é uma carta da Casa Civil da Presidência da República que é remetida através do chefe de gabinete do primeiro-ministro, que, aliás, vem acompanhada de outros pedidos de outros utentes, para também com situações e com problemas e disposições de outras instituições, e que tem a tramitação habitual.

O encaminhamento que era feito era sempre o mesmo. No meu ministério, era o encaminhamento para as instituições visadas pela queixa, reclamação, dificuldade, exposição. Não tenho esses documentos de envio para fora, para outras entidades. Tenho depois comigo já uma resposta aos pais da criança dada por uma das nossas entidades, no caso o Infarmed, a dizer que o medicamento está em processo de avaliação europeu.

A carta que recebe via Casa Civil da Presidência da República não é um relatório médico, é exactamente o quê?
É um ofício de rosto que tem um conjunto de nomes de pessoas, homens, mulheres e também de uma instituição, e que diz: “Junto se remete para os devidos efeitos, para avaliação.” Dentro desse ofício do rosto, do gabinete do primeiro-ministro, vem então uns ofícios do chefe da Casa Civil da Presidência da República, onde a informação que consta é exactamente a mesma. Quanto a este caso destas crianças, o que é que se encontra? Encontra-se de facto a exposição, dizendo que são duas cidadãs portuguesas, filhas de... e de..., que têm uma determinada doença e que precisarão eventualmente de tratamento e, portanto, com esta carta vem, não um relatório médico, mas uma informação médica e os cartões de cidadão das duas crianças. Não houve nenhum contacto da Presidência da República com a ministra da Saúde sobre este tema. A ministra da Saúde não deu qualquer orientação sobre o tratamento. Isso não funciona assim no nosso país. Naturalmente, estou disponível para dar todos os esclarecimentos adicionais.

Já foi contactada pelo Ministério Público ou pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde?
Não.

Não reencaminhou o ofício que recebeu para Santa Maria?
Eu não tenho esse completo documental. Aquilo que me forneceram foi o ofício de entrada e os documentos de resposta de uma concreta identidade, o Infarmed.

Não é estranho?
Aparecem ofícios do Santa Maria mas já a pedir informação financeira sobre o tratamento.

A TVI noticiou que a primeira consulta de Santa Maria teria sido marcada pelo então secretário de Estado, Lacerda Sales. Acha possível?
Não me parece que isso faça qualquer sentido. Se há uma nota de que há duas crianças que precisam de um tratamento, se as crianças têm documentos nacionais do nosso país, o normal era as crianças serem tratadas no nosso país e, portanto, bastava o encaminhamento normal, que era aquilo que se fazia no Ministério da Saúde para a instituição, para a instituição tramitar o processo. Quando um cidadão se queixa a uma entidade da administração pública, há uma obrigação de tramitação de documentação.

Então nem percebe este mal-estar dos médicos que foi evidente?
Não.

Acha que até do ponto de vista deontológico é errado?
Não me cumpre pronunciar-me sobre o bem ou o mal porque não conheço os detalhes do caso, mas tenho ouvido algumas referências que me preocupam e que me perturbam.

O quê?
Que deveríamos não ter tratado estas crianças porque elas não tinham residência em Portugal quando a lei é clara.

É a nacionalidade que conta?
Isso.

Por isso é que a criança da Guiné, que nasceu no Hospital de Santa Maria, não teve medicamento? Acha que não devia ter direito a ter?
Acho que devia.

Mas não teve ainda.
Isso não tem nada que ver com a circunstância da menina não ser portuguesa.

A decisão é só dos médicos, então?
Daquilo que ouvi na comunicação social, há um problema de um visto do Tribunal de Contas. Mas as instituições estão cá para resolver os problemas burocráticos.

Sobre aquelas duas crianças, espero que o processo avalie pelo menos três questões: se houve ou não houve uma interferência indevida; se as crianças deveriam ou não deveriam ter sido tratadas e, em última instância, se o medicamento a utilizar deveria ser aquele ou deveria ser outro. Ou seja, três níveis de responsabilidade: uma responsabilidade clínica; outro tema é se as crianças tinham ou não tinham direito a ser tratadas no SNS e, daquilo que conheço do processo, diria que sim; outro tema é se houve ou não houve uma interferência de terceiros indevida. Sobre isso, não sei. O que posso dizer é que ela não passou por mim.

O médico Levy Gomes disse à TVI que a sua secretária ligava várias vezes ao director de serviço para saber do estado de saúde destas crianças e por isso era impossível a senhora enquanto ministra não saber.
Não comento.

Não é verdade?
Não, não é verdade. Em devido tempo, se averiguará quem fez o quê, a mando de quem, por que motivos, se não fez...

Não foi a sua secretária nem ninguém a seu mando?
Que eu saiba, não. O meu gabinete tinha, como todos os outros gabinetes, um chefe de gabinete e tem uma tramitação.

Já falou com Lacerda Sales sobre este caso?
Não.

Vai actuar sobre estas declarações e insinuações de Levy Gomes?
Não. Não tenho motivo para acreditar que haja da parte do dr. Levy Gomes qualquer má intenção. Penso que ele tem a informação que transmitiu sobre o processo e que, tal como eu, também quererá ser esclarecido.

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