Bacelar Gouveia: “Acho que o Presidente pode invocar uma objecção de consciência” na eutanásia

Numa segunda parte da entrevista, o constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia, ex-deputado do PSD, avança uma solução criativa para Marcelo Rebelo de Sousa nada decidir sobre a eutanásia.

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Bacelar Gouveia, constitucionalista, nas instalações da Renascença Maria Abranches / Publico
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O ex-deputado do PSD, que é também constitucionalista, admite que pode haver uma solução criativa para Marcelo Rebelo de Sousa lidar com a lei da eutanásia que o Parlamento se prepara para confirmar: não tomar nenhuma decisão, invocando objecção de consciência. Nesse caso, teria de ser a segunda figura da nação, o presidente da Assembleia da República, a promulgar, como presidente interino. O próprio reconhece que é uma solução criativa.

Nesta sexta-feira, o Parlamento vai confirmar o texto da eutanásia. Restará agora a fiscalização sucessiva do diploma pelo Tribunal Constitucional. Não há volta a dar?
Há colegas meus que dizem que pode haver de novo fiscalização preventiva. Eu acho que não pode haver porque, não tendo sido alterado o diploma na sua última versão, não há nada a fazer e será confirmado. O Presidente deve obrigatoriamente promulgar no prazo de oito dias. A Constituição é clara. Mas eu gostava de referir um aspecto sobre o qual tenho pensado: eu acho que o Presidente pode invocar uma objecção de consciência.

O que seria objecção de consciência, neste contexto?
Objecção de consciência é quando alguém, no exercício das suas funções, tem de cumprir um dever, mas não cumpre o dever, invocando o impedimento da sua consciência moral ou religiosa ou filosófica. E agora a questão é: mas os políticos também têm direito de objecção de consciência? Ou são só os cidadãos ou governados que têm? Os militares têm, os médicos, os funcionários públicos podem objectar a fazer um aborto, ou podem objectar a fazer a PMA. E eu pergunto: mas então os políticos deixam de ser cidadãos e não têm também direitos fundamentais? Incluindo, neste caso, a liberdade religiosa e o direito a objectar, o direito a exercer a sua consciência, não promulgando?

Mas não acha que já passou esse momento?
Não. Ele neste momento ainda não foi confrontado com o dever de promulgar. Isso nunca aconteceu. Só vai acontecer a partir do dia 12 de Maio. Se se confirmar, aí nasce um dever de promulgar em oito dias. E ele, perante um dever que não quer cumprir porque ofende a sua consciência, põe a hipótese de poder não promulgar, invocando razões de consciência.

E o processo legislativo fica bloqueado?
Não. Eu acho que aí a solução deve ser o presidente da Assembleia da República, como presidente interino para esse acto, promulgar no lugar do Presidente da República.

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Maria Abranches / Publico

Isso pode acontecer?
Pode. Interino no sentido de ser ad hoc para efeitos de uma função que o Presidente da República se considera impedido de realizar, mas sendo obrigado a realizar. Alguém teria de decidir. O direito constitucional não conhece vazios.

Não seria o fim da lei da eutanásia?
Não, aliás, há vários constitucionalistas que defendem esta solução. Admito que seria uma solução original e sobretudo nova na ordem jurídica portuguesa, mas eu acho que é muito importante as pessoas terem a ideia de que os políticos também têm consciência e convicções filosóficas.

E o que acha da questão do referendo, em relação à qual Luís Montenegro se mostra favorável? Ainda há espaço para o referendo?
Acho muito bem. Ainda pode haver fiscalização sucessiva. Vamos ver agora o que é que os novos juízes pensam sobre o assunto. Daqui a um ano, haverá uma recomposição substancial do número dos juízes do Tribunal Constitucional, mas o referendo é muito importante e lamento que, na direcção de Rui Rio, não tivesse sido cumprida uma ordem de um congresso do PSD nesse sentido.

Atendendo a este novo período de relacionamento entre palácios, e caso o Presidente não opte pela solução criativa que assinalou, espera uma nota violenta a acompanhar uma eventual promulgação?
Não, acho que não, porque esta questão não é uma questão política ou partidária. É uma questão de consciência. Há votos cruzados. Atravessa os partidos. É uma questão diferente. Penso que não é por aqui que essa vigilância vai ser activada.

Vamos mudar de assunto e falar sobre o Tribunal Constitucional. Esta quinta-feira, tomam posse quer o presidente, quer o vice-presidente. A eleição dos juízes do TC tem estado envolta em polémica. Há duas ou três semanas, tivemos mudanças nos cooptados. O modelo de eleição dos juízes devia ser alterado?
Acho que sim. Já o escrevi em tempos, numa das edições do meu manual de Direito Constitucional. A questão da cooptação teve como origem histórica [o objectivo de] arranjar três pessoas que fossem neutras, um pouco mais velhas, mais distantes da política mais partidária, digamos assim. Isso falhou. Aliás, neste momento vamos ter três juízes cooptados todos de uma só vez, enquanto os outros dez juízes têm mandatos completamente díspares no tempo. Acho que era de evitar haver juízes de primeira e de segunda classe, que é o que acontece. Hoje há os juízes de primeira categoria, de primeira classe, que são aqueles que são cooptados e que chegam lá sem ninguém saber porquê e sem ninguém lhes ter perguntado nada sobre justiça constitucional ou sobre a sua mundividência em relação à Constituição. E há os outros juízes, os que são eleitos, que se submetem a uma audição parlamentar que é cada vez mais feroz. Portanto, penso que ou mudam a legislação para haver também audições para a designação dos cooptados e para haver aqui uma equiparação, não havendo juízes de primeira e de segunda, ou então devem ser todos eleitos pela Assembleia da República ou haver partilha entre a Assembleia da República e o Presidente da República.

Fazia mais sentido ser o Presidente da República?
Eu em tempos admitia a escolha total dos 13 pelo Parlamento, mas não tenho opinião fechada sobre esse assunto. A questão é complexa e pode ser colocada agora na revisão constitucional, embora não haja nenhuma proposta sobre essa matéria. Mas é sempre possível. O assunto pode ser sempre acrescentado num processo de revisão constitucional. Eu acho que deve haver uma decisão no sentido de, pelo menos, mudar o requisito prévio de não haver uma audição dos juízes cooptados, ou então mudar o sistema para serem todos eleitos, ou uma parte eleita e outra designada pelo Presidente da República. E, já agora, outra coisa importante: estabelecer um limite de idade para os juízes do Tribunal Constitucional. Há seis juízes que têm de ser de carreira. Enquanto os juízes de carreira chegam aos 70 anos e ficam jubilados automaticamente, se forem para o TC têm mais uns quantos anos de vida activa, o que é uma injustiça, porque eles estão lá para serem juízes de carreira, mas depois, se chegarem lá com 70 anos e tiverem a sorte de serem cooptados ou eleitos, podem ficar mais quase nove anos. Não me parece que isso seja justo.

O Tribunal Constitucional considera legítimas todas as decisões tomadas no período em que os juízes já estavam fora de mandato. As decisões tomadas nessa fase podem estar feridas de irregularidades? Sobre a eutanásia, por exemplo...
Poder podem, mas é um raciocínio que é inútil, porque o Tribunal Constitucional não tem uma instância que o possa fiscalizar. Quem guarda o guardião? Na verdade, a não ser em casos muito graves de uma decisão, por exemplo, com falta de quórum ou uma decisão grosseiramente inconstitucional, não há mecanismos de fiscalizar o próprio TC, porque ele não tem outra instância acima.

Devia ter?
Não, não é possível, porque isso seria um jogo de espelhos interminável. Para haver um controlo, teria de haver um controlo do controlo e isso nunca mais pararia. Não é possível. Tem de haver sempre um limite máximo do controlo. Neste caso, deve haver uma norma que faça caducar automaticamente os mandatos quando chegam aos nove anos. Essa é uma solução que está expressa, literalmente, na Constituição italiana. Está lá escrito: quando chegar o último dia, automaticamente termina funções. Nem sequer permite que haja qualquer prolongamento.

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